quarta-feira, 21 de março de 2012

SARAMAGUEANDO


Aos pobres que já existiam, há, agora, a juntar, segundo título de um artigo publicado no Público de 3 de Fevereiro: “Gente como nós” passa a figurar no catálogo dos pobres de Lisboa.

Esta “gente como nós”, podemos traduzir como aqueles que tinham uma vida estável, antes de os bancos os desafiarem para outros tipos de vidas.

A filosofia saloia do se os outros têm, nós também podemos ter.

Agora, a esmagadora maioria dessa “gente como nós”, não pode pagar, as casas, os automóveis, os electrodomésticos, as férias em Cancun que os bancos lhe disseram que podiam ter, bastava o simples click de um empréstimo bancário.

Números de 2010, que especialistas dizem pecarem por defeito, dizem que mais de um quarto dos portugueses estava ameaçadoss de pobreza ou exclusão social.

Juntem-se, impostos pela troika, as medidas de austeridade, o emprego precário, a redução da remuneração do trabalho e, facilmente, podemos sentir que estamos a voltar a tempos que julgaríamos ultrapassados.

Esta situação leva a pegar num texto de José Saramago.

Datado de 4 de Dezembro de 1994, pode ler-se no 2º volume dos Cadernos de Lanzarote.

Um texto desassombrado de quem nada tem a esconder, que revela o quanto o escritor teve de subir a pulso para enfrentar agruras de vida e trabalho:

Num artigo de Ângela Caires publicado na Visão, sobre António Champalimaud, leio que o tio Henrique Sommer, em carta com valor testamentário dirigida às manas Albana e Maria Luísa, lhes recomendava que não se esquecessem de distribuir, pelo Natal, dois contos de réis à Sopa dos Pobres da Freguesia dos Anjos, de Lisboa. Naturalmente, o generoso Sommer (que em glória esteja) desejava que não sofresse mudança, depois do seu passamento, a beneficente prática que instituíra.
Quem poderia imaginar que esta informação, escrita ao correr da pena, viria lançar uma luz nova sobre a minha biografia secreta? De facto, não foram poucas as vezes, no tempo da adolescência, que ocupei um envergonhado lugar na fila de aspirantes à sopa e ao quarto de pão que se serviam naquele atarracado e soturno edifício fronteiro à Igreja dos Anjos… Mais ou menos por essa altura devo ter aprendido na aula de Física e Química da Escola Industrial Afonso Domingues o princípio dos vasos comunicantes, mas só hoje é que consegui perceber, sem reservas mentais nem dúvidas formais, como se efectua a transmissão da riqueza e do bem-estar dos que estão em cima para os que estão em baixo, do conto de réis para o quarto de pão, da fartura para falta. Por muitos que fossem os seus pecados, Henrique Sommer nunca ficaria no inferno, sempre haveria uma concha da sopa para o tirar de lá…

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