quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

PERUS PELO NATAL


Tenho dos meus tempos de miúdo, a lembrança de ver, por estes dias de Natal, no Martim Moniz, dezenas de alentejanos a venderem perus.
Ramalho Ortigão escreve no V volume de As Farpas:
Lisboa prepara neste momento a festa de Natal.
Grandes rebanhos de perus, enrabeirados de lama, espalham no macadame as suas manchas movediças e escuras, de reflexos de aço adornadas de florescências brancas e vermelhas dos moncos. Pessoas idóneas pastoreiam esses galináceos, guiando-os a golpes de cana por entre as rodas dos trens e por entre as pernas dos viandantes. Na compra destes perus convém escolher os mais teimosos: à força de Cana são esses os mais tenros.
A minha avó não comprava o peru no Martim Moniz.
Um tio materno, operário da CUF no Barreiro, vivia no Lavradio, quando o Lavradio, até à Baixa da Banheira, era uma enorme quinta a perder de vista.
Uma casa térrea, com horta e capoeiras, e o peru era ali criado a bolota.
Perto do Natal, eu e o meu pai, íamos ao Lavradio buscar o peru.
Na Estação Sul e Sueste, hoje desactivada, apanhávamos o barco para o Barreiro, ainda movido a carvão.
 No Barreiro apanhávamos a camioneta para o Lavradio.
Barcos e camionetas eram escassos, com longuíssimos  intervalos de espera.
O peru, patas amarradas, viajava numa alcofa.
Trazíamos também alfaces, tomates, cebolas e tangerinas que exalavam um perfume único e embalador.
Nisto se perdia toda uma tarde.
Chegados a casa, a minha avó embebedava o peru com aguaradente, e começava os preparativos para o tempero e o recheio.
Depois era a grande festa do jantar de Natal.
Nunca, mas mesmo nunca, voltei a comer um peru como o que a minha avó cozinhava pelo Natal.
Ainda fiz algumas tentativas, mas já nada era igual.
Nem os barcos a carvão, nem a camioneta da carreira e o o meu tio deixara de ter a horta e as capoeiras.
O cimento tomou conta de tudo e hoje o Lavradio, e tudo à volta, é o que é: betão e mais betão.
Depois chegariam os obsoletos perus de plástico e nunca mais, no jantar de Natal, o peru assentou praça como festim.
Tudo isto é uma doce memória, mas ao mesmo tempo amarga.
Amarga, porque, tal como poema de David Mourão-Ferreira, de que o meu pai muito gostava, se pode ler:
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio.
Assim foi.,, assim será… e o Nada há-de retomar a cor do infinito.
Legenda: perus a serem vendidos nas ruas de Lisboa. Não foi possível identificar autor/origem da fotografia.

Sem comentários: