sábado, 8 de fevereiro de 2014

JOSÉ GOMES FERREIRA


A morte de José Gomes Ferreira não me surpreendeu. Nas últimas vezes que com ele estive era visível que o anjo do fim lhe tocara no ombro. Foram oitenta e quatro anos de vida de poeta que ele soube encher de comunicabilidade poética e pessoal que raros conseguem alcançar.

Tenho para com José Gomes Ferreira uma dívida de gratidão que não vou pagar com esta crónica não obstante ela ser também uma imposição de consciência que devo à sua sensibilidade e à sua delicadeza e, por isso, à sua memória.

O meu primeiro contacto com José Gomes Ferreira data de há mais de quarenta naos. Estava no Colégio de santo Tirso e era meu professor o Padre António de Magalhães. Um dia, na aula, leu um poema de José Régio e outro de José Gomes Ferreira. Perante a nossa emoção, comentou: - Como vêem, a poesia não acabou ou em Portugal.

Conheci-o depois em Lisboa e não quero dizer que me tornei um íntimo, o que é ainda mais importante para aquilo que vou contar. Algumas vezes ia tomar café ao Montecarlo, onde com o Carlos de oliveira tinham mesa certa e onde acorria quem gostava de os ouvir. Aquele café estava de tal modo ligado a essa presença que o Paulo e Carmo lhe chamava o Montecarlos.

O José Gomes Ferreira, o Manuel da Fonseca e o Manuel Mendes foram os melhores conversadores do nosso tempo. O José Gomes tinha uma comunicabilidade e um despojamento de si próprio a contar as suas histórias que encantava aqueles que ali apareciam para o escutar. Lembro-me de lhe ouvir a sua experiência de crítico cinematográfico, das frases que usava quando os cineastas o chamavam para ele ir ver as «obras-primas»: - «O segredo é a gente dizer o vago como se fosse erudito, antecedido dum silêncio: o silêncio de Pacheco.» Terminou a história assim: - O pior foi quando quiseram que eu fizesse um filme. Um produtor chamou-me disposto a financiar um filme meu.»

Todos nós exclamámos: - «Então você não quis?»

Ele respondeu: - Não. Eu disse-lhe: eu não sei nada de cinema. Eu sou só crítico!»

Quando fui assessor para a cultura do então Ministro da Educação, Prof. Veiga Simão, ele, o Manuel Ferreira e eu, trabalhámos com alguma assiduidade na reabertura da Associação Portuguesa de Escritores. Foi um trabalho fácil pois estávamos os três igualmente empenhados e o Ministro fazia questão em reparar de algum modo aquela injustiça. Creio que a nossa amizade ficou com isso reforçada e foi com prazer que me inscrevi na nova associação de que ele foi presidente.

Quando veio a Revolução de Abril, tive alguns desgostos com conhecidos meus. Pessoas que até aí mantinham comigo relações cordiais e até algumas a quem eu, através da minha situação no Ministério, tinha podido fazer pequenos favores, era visível que procuravam evitar-me. Nesse aspecto a Revolução teve uma acção extraordinariamente benéfica no que diz respeito à higiene dos nossos conhecimentos e, até por isso, foi bom que tivesse acontecido.

Foi nessa altura que pude avaliar a qualidade moral e a delicadeza da sensibilidade do José Gomes Ferreira pois, durante o período revolucionário, não só redobrou da afabilidade e de atenções para comigo como ele, que nunca me mandava os seus livros – como disse, as nossas relações não o justificavam – passou a enviar-mos com dedicatórias duma grande cordialidade e amizade.

Esse tipo de homens está a desaparecer. Às vezes penso no que seria o José Gomes Ferreira se a sua revolução tivesse triunfado e lembro-me de Gorki, com o seu humanismo imediato, sempre a bater à porta de Lenine a tentar resolver situações individuais de injustiça daqueles que viveram na esperança mas a quem a máquina cega da revolução impiedosamente vitimava.

Temos um poeta a menos mas não podemos esquecer que o pequeno lote de energia que dá a uma comunidade a sua face humana também muito diminuiu com a sua morte.


António Alçada Baptista, crónica publicada em A Tarde de 18 de Fevereiro de 1985 e incluída em Um Olhar à Nossa Volta, Editorial Presença, Lisboa, Outubro de 2002.

Legenda: José Gomes Ferreira na tomada de posse dos primeiros corpos Gerentes da Associação Portuguesa de Escritores, em 14 de Junho de 1973, tendo a seu lado Sophia de Mello Breyner Amdresen, presidente da Assembleia Geral.

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