quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?



CINEMA

Comunidade das pequenas salas de cinema, não muita gente, e a que houver tocada em cheio como o coração tocado por um dedo vibrante, tocada, a pequena assembleia humana, por um sopro nocturno, uma acção estelar. Não se vai lá em busca de catarse directa mas de arrebatamento, cegueira, transe. Vão alguns em busca de beleza, dizem. É uma ciência de ritmo, ciclo, luz miraculosamente regulada, uma ciência de espessura e transparência da matéria? De todos os pontos da trama luminosa, ao fundo da assembleia sentadamente muda morrendo e ressuscitando segundo a respiração na noite das salas, a mão instruída nas coisas mostra, rodando quintuplamente esperta, a volta do mundo, a passagem de campo a campo, fogo, ar, terra, água, éter (ether), verdade transmutada, forma. A beleza é a ciência cruel, imponderável, sempre fértil, da magia? Então sim, então essa energia à solta, e conduzida, é a beleza.

Porque as pessoas amam a morte, a sua morte, figurativa, figurada, figurante, e amam o restabelecimento da vida. Esta é uma espécie de nomeação física que arranca à decadência em nós esparsa das imagens naturais, e transmite, em disciplina e cortejo, o prodígio e o prestígio dos objectos em torno movidos por um inebriamento cerimonial. Refazemos a natureza em imagens simbólicas que podem interpretar literalmente. A escrita não substitui o cinema nem o imita, mas a técnica do cinema, enquanto ofício propiciatório, suscita modos esferográficos de fazer e celebrar. Olhos contempladores e pensadores, mão em mãos seriais, movimento, montagem da sensibilidade, música vista (ouçam também com os olhos!), oh, caminhamos para a levitação na luz!

Alguns poemas já tinham ensinado uma sabedoria de olhar (cf. Divergência entre Goethe e Schiller acerca da objectividade) e, pois, uma sabedoria de ver. Certas montagens poemáticas ditas espontâneas, inocentes (de que malícias dispõe a inocência?), processos de transferir blocos da vista – aproximações, fusões e extensões, descontinuidades, contiguidades e velocidades – transitaram de poemas para filmes e circulam agora entre uns e outros, comandados por arroubos da eficácia. O arroubo é uma atenção votada às miúdas cumplicidades com o mundo, o mundo em frases, em linhas fosforescentes, em texto revelado, como se diz que se revela uma fotografia ou se revela um segredo. O poema, o cinema, são inspirados porque se fundam na minúcia e rigor das técnicas da atenção ardente.

Alimentamo-nos de imagens emendadas, de representações conjugadas simbolicamente, pontos fortes,punti luminosi, pensamentos bucais, “o pensamento forma-se na boca”, Tzara, nos olhos, irrompe ali, todo este fluxo, aqui, diante do medo, do júbilo, do êxtase, oh soberba antologia da magnificação quotidiana segundo o princípio do absoluto! Muitas erratas, muita pontuação, muito recurso à parcimónia, até Beethoven pegar na Ode à Alegria e o triunfo erguer-se, frente aos olhos, dos recessos da dor, filme, mágica prestidigitação tão calculadamente intempestiva nas pequenas salas escuras, o écran defronte.
A imagem é um acto pelo qual se transforma a realidade, é uma gramática profunda no sentido em que se refere que o desejo é profundo, a profunda a morte, e a vida ressurecta. Deus é uma gramática profunda.


Herberto Helder em Poemas Com Cinema, antologia organizada por Joana Matos Frias, Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa Novembro de 2010

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