quinta-feira, 19 de julho de 2018

E AÍ PARECE QUE SOU SUFICIENTEMENTE BOM


Manuel da Fonseca, num dos seus poemas, deixou lavrado que os místicos andaram pelos séculos construindo noites geladas solidões.
Toda uma vida, se bem que haja breves lampejos de alguma felicidade, Mário-Henrique Leiria transportou aos ombros do seu débil corpo, geladas solidões que nem os amigos, os cigarros, os seus fiéis leitores, o gin, conseguiram aliviar.

Desde Carcavelos, em 17 de Dezembro de 1974 – Ah! o Natal! sempre o Natal - , corta a direito:

Acabo de receber a tua carta. O teu cartão. O teu cheque. Não sei bem que te dizer. Cartas tuas, todos os dias, se quiseres. Cartões também. Cheques, querida menina, faz-me o favor: não repitas. Olha que não é ingratidão, não é mesmo. Estou comovido e impressionado. Mas, Isabel, tenho um vício e um orgulho só aceito aquilo que obtenho por briga, seja ela qual for. Aceito o teu amor, todo, Obtive-o. É o que quero de ti. O teu dinheiro não posso. É teu e és tu quem o obtém. Percebes? Creio que sim. E agora, obrigado mesmo pelo cheque. Aliás veio a calhar, parece que a Jovília tem que ser operada em breve e sabes como são as coisas neste excelso país.
Eu aqui, desiludido (aliás já é costume), Estou retraído, à espera. Sabes bem que as coisas se fazem até ao fim, ou não se fazem. E por cá tudo vai pelo meio termo. Não aceito um socialismo que o não é, tal como nunca aceitei a tal democracia com escravos e tudo. Talvez eu seja radical demais (ou excessivamente honesto) para entrar no jogo. De jogos, só gosto de poker e aí parece que sou furiosamente bom. Mas só poker, mais nada.
Demiti-me de tudo. Estou só- Aliás, sempre estive. Agora dizem que sou anarquista, inimigo do Estado. Talvez seja, não sei. O que eu não sou, com certeza, é oportunista.
Bem, deixemo-nos disto.
Cá por casa há frio. O malvado Vodka morde em toda a gente. Ainda bem.
A mãe, muito velhinha e cansada.
A Jovília continua com análise, biópsias, radiografias. Tem dores e chateia toda a gente. Deve ter que ser operada, não sei a quê. Nem estou interessado em saber.
Eu, dores de cabeça de manhã à noite, reumatismo excelente e incapaz de escrever. No entanto tenho mesmo de escrever as habituais besteiras para os jornais. Questão de dinheiro, mais nada.

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