domingo, 8 de julho de 2018

MAS LÁ QUANTO A DOUTRINA...


Muitos meses depois, já em 53, liberto pois de qualquer disciplina partidária, fiz uma série de oito conferências na Associação de Estudantes da Facul­dade de Ciências de Lisboa, por iniciativa da sua secção cultural.
Público crescente. Pois sou infor­mado de que, enquanto falava, naquele silêncio ávi­do e colaborante que é o prémio maior para qual­quer orador, se bichanava na sala a deitar por fora: «Um tipo bestial. E pena como se portou quando esteve preso. Meteu muita gente dentro». Era in­fantil. Quem me conhecia, e muitos me conhe­ciam, sabia perfeitamente que eu nunca estivera preso.
A verdade é que nenhuma organização tem cul­pa dos seus doentes nem até dos seus períodos de crise sobretudo com dirigentes importantes na ca­deia. O que não obsta a que a bola de neve comece a tentar formar-se.
Não me passou despercebido, já três anos anda­dos e o tosco processo concluído, o tipo de objec­ções que o Mário Sacramento e o meu velho ami­go Óscar Lopes acharam por bem fazer — só eles e só então — a algumas teses expostas n' A Paleta e o Mundo, não se esquecendo ambos de informar os respectivos públicos de que o autor mudara de doutrina e que, embora muito isto e mais aquilo, abandonara «o caminho comum». Quanto a «ca­minho comum», na acepção que lhe davam, era já mais que evidente. Mas lá quanto a doutrina...
Havia muita coisa por detrás, que talvez nem eles conhecessem. Pormenores de importância, ou­so pensar. E, porque a história das ideias, dos paí­ses, dos partidos, finalmente das pessoas, também de pormenores se faz, espero ainda contar os que comigo se prendem (se prenderam) quando tiver espaço para tanto. Não tem pressa. E talvez — é a minha vez de o pensar — não seja o melhor mo­mento para. Resta saber se alguma vez o será.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Mário Dionísio na Praia Grande. Fotografia de sua filha Eduarda Dionísio retirada do catálogo Passageiro Clandestino

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