domingo, 1 de julho de 2018

POR AQUI TUDO ÓPTIMO


Já aconteceu o 25 de Abril, Mário-Henrique está em Carcavelos e no dia 18 de Setembro de 1974 escreve à «Menina Isabelinha do Carrapito».
Começa por a informar que recebeu o pacote com as pastilhas ant-reumátivas. Chama-lhe benfeitora, «como dizem os ceguinhos quando lhes dão 5$00… Muito obrigado, minhe benfeitora! (nessa altura a benfeitora, muito chareada, tira a bengala ao ceguinho e dá-lhe um pontapé no cu.»

A meio da carta, Mário-Henrique, com o humor negro habitual, entra a fazer o ponto político e termina-a, de um modo fulminante, a falar da mãe da tia que vivem com ele em Carcavelos;

« Quanto á minha posição, saberás que me estou a radicalizar ao uso de “la Sud-América”. O PC está a adaptar-se oportunisticamente. Todos sabemos que o poder nunca se tomou eleitoralmente (vide erro chileno) e que isto de ter um ministro “comunista” (?) no governo liberal-burguês chega a dar vontade de rir… embora o PC seja, actualmente, o partido mais forte e bem organizado Mas essa força e organização, por medidas de táctica eleitoreira, começa a voltar-se contra os trabalhadores realmente revolucionários. Então que é isto? Não há dúvidas que o meu velho camarada Palma Inácio está certo, certíssimo. E a minha experiência pode ser útil…
… porque isto de andar em reuniões inúteis, a colar papéis, a aconselhar os camaradas trabalhadores a “não fazer greve porque é prejudicial à economia da nação” (leia-se “economia do poder capitalista”…) a andar aos beijinho aos filhos da puta das forças armadas (que no mês passado mataram pura e simplesmente a tiro um companheiro), a dizer que a revolução dos cravos foi linda /detesto o fedor dos cravos), isto não me serve…
Democracia à moda ocidental, claro, liberdade de imprensa (já tive três textos cortados), tudo isto está lindo. Não para mim, que não sou democrata desse jeito. Nem de jeito nenhum, já que nada tenha a ver com democracias…
Pois é, menina, desabafei.
E agora cá por casa:
A Jovília lá vai andando, com o seu cancrozito eficiente. Agora, como não tem dores, até pensa que já não é. Deixá-la pensar. Fez 11 (onze) radiografias a semana passada. Fiquei pasmado. Tanta radiografia para quê? Bem, afinal todo o mundo precisa de ganhar a vida, não é? Também fez uma biópsia, esteve internada 10 dias e já está em casa. No dia 26 vai fazer mais qualquer coisa que não sei o que é. Afinal, o que é preciso e fazer até morrer, conforme dizem os professores de moral.
A mãe, com uma gripe gigantesca, mas insiste em ir à praça. Eu deixo, talvez morra mais depressa.
Eu, um pouco pifado. Os camaradas, dado que eu andava pelo já não perceber nada do que me diziam e aos tombos mais ou menos incerto, arrastaram-me a um especialista não sei de quê, ontem. O homem disse-me várias coisas, pôs-me nú (Vê lá tu!) apalpou-me e parece que me explicou fosse lá o que fosse. Não me lembro. Mandou-me fazer várias análises e um encéfalo-não-sei-quê. Disse logo que sim, claro, que eu não sou doido. E pronto. É o fazes.
Como vês, por aqui tudo óptimo.»

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos

Legenda: desenho de Mário-Henrique Leiria tirada de Mário-Gin-Tónico Volta a Atacar.

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