sexta-feira, 20 de julho de 2018

AGORA TODAS AS MINHAS REFEIÇÕES SERÃO ASSIM


Fechara-se a noite quando Ricardo Reis saiu. Jantou na Rua dos Correeiros, num restaurante de sobreloja, de tecto baixo, sozinho entre homens que estavam sozinhos, quem seriam, que vidas teriam, atraídos porquê a este lugar, mastigando o bacalhau ou a pescada cozida, o bife com batatas, quase todos servindo-se de vinho tinto, mais compostos de traje que de modos, batendo no copo para chamar o criado, palitando com esforço e volúpia dente por dente ou retirando com a pinça formada pelos dedos polegar e indicador o filamento, a fibra renitente, um que outro arrotando, folgando o cinto, desabotoando o colete, aliviando os suspensórios. Ricardo Reis pensou, Agora todas as minhas refeições serão assim, este barulho de talheres, estas vozes de criados dizendo para dentro Uma sopa, ou Meia de chocos, maneira abreviada de encomendar meia porção, 133 estas vozes são baças, a atmosfera lúgubre, no prato frio a gordura coalha, não foi ainda levantada a mesa ao lado, há nódoas de vinho na toalha, restos de pão, um cigarro mal apagado, ah como é diferente a vida no Hotel Bragança, mesmo não sendo de primeira classe, Ricardo Reis sente uma violenta saudade de Ramón, a quem não obstante tornará a ver no dia seguinte, hoje é quinta-feira, só sairá no sábado. Sabe porém Ricardo Reis o que saudades destas costumam valer, tudo vai é dos hábitos, o hábito que se perde, o hábito que se ganha, está há tão pouco tempo em Lisboa, menos de três meses, e já o Rio de Janeiro lhe parece uma lembrança de um passado antigo, talvez doutra vida, não a sua, outra das inúmeras, e, assim pensando, admite que a esta mesma hora esteja Ricardo Reis jantando também no Porto, ou no Rio de Janeiro almoçando, senão em qualquer outro lugar da terra, se a dispersão foi tão longe. Em todo o dia não chovera, pôde fazer as suas compras com todo o sossego, sossegadamente está agora regressando ao hotel, quando lá chegar dirá a Salvador que sai no sábado, nada mais simples, saio no sábado, mas sente-se como o adolescente a quem, por se recusar o pai a dar-lhe a chave da casa, ousa tomá-la por suas mãos, fiando-se da força que costumam ter os factos consumados.

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