domingo, 19 de agosto de 2018

UMA LUFADA DE CHEIRO A BUFETE DE ESTAÇÃO


O romance começa numa estação ferroviária, ronca uma locomotiva, um arfar de êmbolo tapa a abertura do capítulo, uma nuvem de fumo esconde parte do primeiro parágrafo. Pelo meio do cheiro a estação passa uma lufada de cheiro a bufete de estação. Está alguém a olhar pelos vidros embaciados, abre a porta envidraçada do bar, lá dentro também está tudo enevoado, como que visto por olhos de míope, ou então por olhos irritados com ciscos de carvão. São as páginas do livro que estão embaciadas como as janelas de um velho comboio, é nas frases que pousa a nuvem de fumo. É uma noite de chuva: o homem entra no bar; desabotoa o sobretudo húmido; envolve-o uma nuvem de vapor; um silvo põe-se a correr pelos carris brilhantes da chuva a perder de vista.
Um silvo que parece de locomotiva e um jacto de vapor erguem-se da máquina de café que o velho empregado do bar põe sobre pressão como se lançasse um sinal, ou pelo menos é a ideia que dá pela sucessão das frases do segundo parágrafo, em que os jogadores nas mesas ocultam o leque das cartas contra o peito e se viram para o recém-chegado com uma tripla reviravolta dos pescoço, dos ombros e das cadeiras, enquanto os fregueses em pé encostados ao balcão erguem as chávenas e sopram na superfície do café de lábios e olhos semicerrados, ou sorvem a parte de cima das canecas de cerveja com uma atenção exagerada para não as deixar entornar. O gato arqueia o dorso, a caixeira fecha a caixa registadora que faz dlim. Todos estes sinais convergem no informar que se trata de uma pequena estação de província, onde quem chega é imediatamente notado.
As estações assemelham-se todas: pouco importa que as luzes não consigam iluminar para além do seu halo esfumado; seja como for, este é um ambiente que tu conheces de cor, com o cheiro a comboio que fica mesmo depois de todos os comboios terem partido, o cheiro especial das estações de pois de ter partido o último comboio. As luzes da estação e as frases que estás a ler parecem ter a tarefa mais de dissolver do que indicar as coisas que afloram de um véu de escuridão e de névoa. Eu desembarquei esta noite nesta estação pela primeira vez na minha vida e já me parece ter passado aqui uma vida, entrando e saindo deste bar, passando do cheiro do alpendre ao cheiro da serradura molhada dos lavabos, tudo misturado num único cheiro que é o da espera, o cheiro das cabinas telefónicas quando só resta recuperar as moedas porque o número ligado não dá sinais de vida.

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