sábado, 26 de setembro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


 Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

O QU’É QUE VAI NO PIOLHO?

 Gosto dos filmes que começam com uma voz off.

 A Fundação Calouste Gulbenkian, para comemorar o seu cinquentenário, nomeou João Bénard da Costa, como responsável pela selecção dos filmes para o ciclo Como Era Belo o Cinema.

 O ciclo abriu, a 4 de Novembro de 2006, com O Vale Era Verde de John Ford, baseado no romance de Richard Llewellyn.

 Escreveu João Bénard da Costa em Os Filmes da Minha Vida não há filme que me faça mais saudades.

 Para além de um filme de doces nostalgias, Bénard da Costa não deixa de salientar o cunho político-laboral que o filme encerra, quando o pai, à greve dos mineiros, em que os filhos estão envolvidos, chama socialist nonsense, recusando-se a aderir e tentando proibir os filhos de a fazer.

 A discussão azeda em torno da velha mesa patriarcal. E o pai proíbe que continue. Quem quiser coisas  dessas não tem lugar naquela casa. E é então que, um a um, os cinco filhos mais velhos se levantam e saem. Fica só o mais novo, criança ainda e fica um enorme silêncio perante aquele primeiro “assassinato do pai”. De pois, o miúdo tosse e, sem o olhar, o pai diz muito devagar: “Yes, my son, I know you are there.

 Cena deliciosa esta, uma das muitas que marcam indelevelmente o filme.

Jorge Silva Melo no seu Século Passado:

Mas vê-se sempre O Vale era Verde, de maneira diferente porque de todas as vezes se chora de maneira diferente. Já ao ver este filme, chorei infâncias perdidas, quando mais para aí me dá o sentimento; ou a morte dos pais; ou a miséria da mina, ventre infernal do capitalismo; ou a honra dos trabalhadores; ou a coragem das mães; ou as refeições em silêncio; ou o casamento da irmã; ou as longas doenças da infância com os primeiros romances lidos na cama; ou  a chegada da Primavera, ou o cheiro a sabão azul e branco, o acreditar que “um homem não chora”, o acreditar no silêncio dos homens e na determinação das mulheres, na honra, no valor do trabalho, no fluir inexorável da vida, na impossibilidade do regresso, na consciência da luta. E também nos aventais brancos, nas grandes almofadas, no banho na celha, na água a ferver...

 Digo eu, agora: também a lindíssima Maureen O’Hara, nos seus 21 anos de cabelos ruivos, no preto e branco do filme, a atingirem um brilho esplendoroso.

Um filme em que não há nada, mas mesmo nada, que não esteja no lugar certo.

A perfeição é possível?


Ainda João Bénard da Costa: Há quem diga que tudo o que vive é sagrado, Ford, que o não disse filmou-o.

A tal voz off, que eu tanto gosto nos filmes, inicia-nos os passos para o desenrolar do filme:

Estou a embalar os meus pertences no xaile que a minha mãe levava ao mercado, e vou-me embora do meu vale. Desta vez jamais voltarei. Deixo para trás as minhas memórias de 50 anos. A memória. Que estranho que a mente esqueça tanto do que só agora acabou de passar, ainda que mantenha viva a memória do que aconteceu há anos atrás, dos homens e mulheres há tanto tempo falecidos. Mas quem dirá o que é ou não real? Como posso crer que todos se foram, quando as suas vozes permanecem gloriosas nos meus ouvidos? Não. E levantar-me-ei sempre para voltar a dizer não, porque eles continuam a ser uma verdade viva na minha mente. Não há nem cerca nem sebe, em torno do tempo que passou. É possível ter de volta o que se gostou, se o recordarmos. Por isso posso fechar os olhos ao que o meu vale é agora e que já se foi, e vê-lo tal qual como ele era quando eu era miúdo. Verde como era e possuído pela abundância da terra. Em todo o País de Gales não havia outro tão bonito.Tudo o que alguma vez aprendi enquanto criança, aprendi-o com o meu pai, e nunca achei que nada do que ele me disse estivesse errado ou fosse inútil. As lições que me ensinou permanecem tão intensas e claras na minha mente como se as tivesse ouvido apenas ontem. Nesses dias, a escória negra, os resíduos dos poços de carvão, só então tinham começado a cobrir a encosta da nossa colina, mas ainda não tinham desfigurado o campo ou escurecido a beleza da nossa aldeia. A mina de carvão só então começara a enfiar os magros dedos negros por entre o verde. Ainda consigo ouvir a minha irmã Angharad a chamar-me. Mineiros eram o meu pai e os meus irmãos e orgulhosos do seu oficio. Alguém começava a cantar, e o vale repicava ao som de tantas vozes. Porque o cantar está para o meu povo como ver está nos olhos.

Como isto não é um exercício de crítica ao filme, antes uma relembrança do quanto é belo o cinema, deixo o discurso de Mr. Gruffydd, o padre que vai ser julgado pelo conselho dos diáconos, gente que, ao longo dos tempos, a Igreja sempre guardou em si, como defensores de uma moral obsoleta, hipócrita, tão característica dos beatos e beatas de sacristia.

O meu avô paterno, anticlerical militante, adorava este discurso, o discurso de Mr. Gruffydd, interpretado por Walter Pidgeon:

Esta é a última vez que tomo a palavra nesta capela. Vou deixar o vale com mágoa, por aqueles que me ajudaram aqui, e que deixaram que eu os ajudasse. Mas... para os restantes, aqueles que provaram que desperdicei o meu tempo entre vós, só tenho uma coisa a dizer. Não houve um único entre vós que tenha tido a coragem de vir ter comigo e me acusar de alguma má acção. Mesmo assim, seja como fôr, se houve algum pecado, sou eu quem deve ser considerado pecador. Há alguém que queira erguer a voz, aqui e agora, para me acusar? Não. Também são cobardes para além de hipócritas. Mas eu não vos culpo. A culpa é tanto minha como vossa. As línguas ociosas e a pobreza de espirito que têm demonstrado, significam que não consegui transmitir à maioria a lição que me foi dada para ensinar. Quando era jovem pensava que  podia conquistar o mundo com a  verdade. Pensava vir a dirigir um exército maior do que Alexandre alguma vez sonhou. Não para conquistar nações mas para libertar a espécie humana.

Com a verdade. Com o som dourado da palavra. Mas só uns quantos escutaram. Só uns poucos de vocês compreenderam. Os restantes vestiram-se de preto e sentaram-se na capela. Porque é que cá vêm? Porque vestem de preto a vossa hipocrisia e a exibem perante Deus aos domingos? Por amor? Não. Já demonstraram que têm o coração demasiado definhado para receberem o amor do Vosso Pai Divino. Eu sei porque vieram. Vi-o nas vossas caras todos os domingos enquanto estavam aqui de pé perante mim. Foi o medo que vos trouxe cá. Um medo horrível e supersticioso. Medo da retribuição divina. Um relâmpago e o fogo dos céus, a vingança do Senhor e a justiça de Deus. Mas esqueceram-se do amor de Jesus. Ignoraram o seu sacrifício. A morte. O medo. As chamas, o horror e as roupas negras. Reúnam então o vosso conselho. Mas saibam que se estão a fazer isto em nome de Deus e na casa de Deus, estão a cometer uma blasfémia contra Ele e a sua palavra.

A mesma voz off que nos introduz o filme, encerra-o:

Homens como o meu pai não podem morrer. Permanecem ainda hoje, comigo, tão reais na memória com o eram na carne, amando e amados. Como era verde o meu vale.

Estive a rever o filme.

Quando chegou o The End, se vos disser que os meus olhos estavam secos, não acreditem.

Texto publicado em 19 de Outubro de 2012.

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