quarta-feira, 21 de julho de 2021

SER TESTEMUNHA É PIOR DO QUE SER RÉU

Por algum motivo os cidadãos têm hoje medo dos tribunais. Se o leitor tiver a infelicidade de se envolver num pequeno acidente de automóvel há-de ver as testemunhas fugirem do local, de si e das suas razões, como o diabo foge, diz-se, da cruz. Porque hoje, ser testemunha é, às vezes, pior do que ser réu. Uma testemunha não é tratada (nem respeitada) como um desinteressado colaborador da justiça, mas como um intruso; e quem se presta a depor em juízo é porque não está no seu juízo… A partir do momento fatídico em que dá o «nome, estado, profissão e morada», um homem deixa de ser senhor do seu destino; será notificado para diligências que, sem que ninguém lhe dê uma explicação, não se realizam; para julgamentos sucessivamente e infinitivamente protelados; perderá o tempo e a paciência; praguejará vezes sem conta em silêncio; e, quando, finalmente chegar (se chegar) a entrar na sala de audiências, será invectividado e vexado, ouvirá palavras duras, insinuações, alusões, indignidades, e não terá, a mais das vezes, a protecção de quem, nos tribunais, está acima das partes e do resultado do litígio.

Manuel António Pina em Crónica, Saudade da Literatura

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