quarta-feira, 24 de novembro de 2021

OLHAR AS CAPAS


De Maneira Que É Claro…

Mário de Carvalho

Porto Editora, Lisboa, Setembro de 2021

Os nossos espaços. Também somos formados por eles. Por aí vagueia a memória que só muito raramente (pode acontecer…) dispensa o cenário. Às vezes engana-nos. É o seu papel.

Eu tive duas avós: a da vila e a do monte. Da vila guardo o vermelho lume afável da lareira, cadeiras de palhinha, família em volta, gatos, mãos ásperas acariciando-me o rosto, vozes a sumirem-se nas lonjuras do sono. Mas também o quarto escuro, uma despensa negra, esconsa, onde se amassava o pão. Pairavam no ar espesso cheiros adocicados. Azeite. Parecia não haver luz que ali fosse consentida. Como se o negrume irradiasse cá para fora. Inquietava-me.

No monte, eram os horizontes às escâncaras, o sol  aberto através de searas, carreteiras, areias, sobro. A rua do monte, o forno do pão, o poço, a grande amoreira. Nunca estava tudo visto e percorrido.

Mas havia também a percepção, mal suspeitada, de que algo adejava sobre aquela família, um mal-estar qualquer que não me transmitiriam, mas que eu adivinhava, por minúsculos sinais. As crianças sofrem muito mais do que se pensa…

O escritório do meu pai, na Calçada do Garcia, apertada e íngreme. Mobílias de fancaria, um enorme relógio redondo, dísticos, em fundo pardo, a apelar à seriedade dos negócios: «Não fazem ninho os milhafres na caverna dos leões.» Sem citar o autor.

As várias casas onde fomos vivendo, desde a Ajuda ao Bairro dos Actores, passando pelos Anjos, Campolide, Campo de Ourique, Picheleira, deixaram cada qual, a sua marca: um troço de rua, uma prateleira de despensa, uma certa janela em aberto, o rendilhado dum tecto, a curva dum corredor, umas sonoras escadas de serviço, um recanto de marquise, um pátio com claraboias… Disso sou também feito, e com isso escrevo, mesmo sem que os lugares o saibam. Eu também os contenho.

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