quarta-feira, 3 de novembro de 2021

DANÇAR FORA DA DANÇA

16 de Março de 1992

Nunca dancei. Vi os outros dançarem, em terraços voltados para o mar, no chão de areia de África ou do Brasil, em clandestinos infernos de bares de marinheiros ou em inflamadas discotecas de praia turísticas, vi-os e julguei-os felizes, esquecidos e voláteis, perdidos e enovelados numa bola de fogo, mesmo se às vezes os pares se rompiam e ela vinha sentar-se a chorar, e então eu pensava que ainda havia palavras que podiam funcionar como carícias, que eu sabia dizê-las, palavras redondas, encostadas à face magoada e triste. Também dancei sem que os outros soubessem que eu dançava, mas dancei fora da dança, porque dançava para mostrar que também dançava, e lembrava-me disso em cada passo, e nunca esquecia que era o meu próprio corpo que dançava, e nunca soube dançar sobre o esquecimento do corpo, nunca ninguém dançou sobre o meu corpo como se fosse a areia da praia ou um terraço voltado para o mar, nunca ninguém que eu sentisse os dois esquecidos de mim.

Pouco a pouco, aprendi a olhar a arte da dança, e passei noites inteiras no deslumbramento de os ver, sem palavras úteis que me explicassem o que ali se passava à minha frente. Era apenas ficar sentado com os olhos colados ao vidro de um mundo outro em que os corpos se multiplicavam como estrelas no momento preciso em que ainda não se tinham tocado, mas já começavam a precipitar-se uns para dentro dos outros. Eles dançavam, esplêndidos, gloriosos, e eu ao vê-los sei que nunca dancei.

Eduardo Prado Coelho em Tudo O Que Não Escrevi, Volume II

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