quinta-feira, 18 de novembro de 2021

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Dito já que começaram as iniciativas que visam registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um parágrafo, aquilo que constitui os milhares de sublinhados que, ao longo dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam a  Biblioteca da Casa.

«E está neste pensar quando subitamente uma casa à beira da estrada lhe entra pelos olhos dentro e o obriga a parar adiante. É uma casa comum, de porta e janela parede da frente baixa, alta a de trás, telhado tosco de duas águas. Grandes placas de reboco desapareceram, a pedra está à vista. À janela há um homem de barba crescida, chapéu velho e sujo na cabeça, e os olhos mais tristes que pode haver no mundo. Foram estes olhos que fizeram parar o viajante. É caso decerto raro naquele lugar porque logo se juntaram três ou quatro garotos, curiosos sem nenhum disfarce. O viajante aproxima-se da casa e vê que o homem já saíra para a estrada. Veio sentar-se na berma do caminho como se estivesse à espera. Puro engano; este homem não espera ninguém. Quando o viajante lhe falou, quando fez as tolas perguntas que nestes casos se fazem, mora aqui há muito tempo, tem filhos, o homem tira o chapéu, não responde, porque não podem dar resposta, ou são-no de mais, aqueles suspiros e trejeitos da boca. Aflige-se o viajante, sente que está a penetrar num mundo de pavores, e quer retirar-se, mas são as crianças que o empurram para dentro de casa onde nada mais há que negrume, mesmo estando aberta a janela onde o homem espairecia. São negras as paredes descascadas de argamassa, negro o chão, e negra naquelas sombras parece a mulher que está sentada a uma máquina de costura. O homem não fala, a mulher pouco é capaz de dizer, ele tolinho como um de Cristo que morreu e voltou, e tendo ido e vindo nem gostou antes nem depois, e a mulher é irmã, trabalha naquela máquina quase às escuras, cosendo trapos, esta é a vida de ambos, não outra. O viajante mastigou três palavras e fugiu. Diante destas aventuras, padece de cobardia.
Não há mais fáceis filosofias que estas, e de nenhum risco: comparar os esplendores da natureza, mormente passeando o viajante no Minho, e a miséria a que podem chegar homens, ficando nela a vida inteira e nela morrendo.»

Hoje peguei na Viagem em Portugal, 1º edição, Círculo de Leitores, Março de 1981.

O que Saramago conta no pedacinho que escolhi, (pág. 63 da edição do Círculo de Leitores), passa-se em Padim da Graça, uma aldeia pertencendo ao município de Braga.

Quando a Caminho publicou Viagem a Portugal sem as fotografais que constituem a edição do Círculo de Leitores, Saramago, escreveu algures que  ficou feliz. 

O livro tomava o tamanho dos tais livros de capa amarela.

Propriamente sobre o livro diz Saramago:

«Viagem a Portugal é provavelmente o último livro sobre um Portugal que já não existe, que estava a deixar de existir naquele momento.»

O Círculo de Leitores pretendia assinalar os 10 anos de existência em Portugal e pediu a Saramago um guia de viagem, algo que pudesse ser útil a uma pessoa que vai dar um passeio pelo país e que leva um livro com informação dos lugares, dos restaurantes, dos hotéis.

Saramago disse aos directores do Círculo que não conseguia fazer um livro desse género e ocorreu-lhe dizer:

«Se vocês quiserem, se estiverem interessados nisso, eu posso fazer uma viagem e depois conto»

Os directores pediram uns dias para pensar na proposta.

Três, quatro dias depois, disseram-lhe para fazer a viagem.

E o viajante partiu à descoberta do que não sabe, porque ninguém é viajante se não for curioso.

 «O viajante viajou no seu país. Isto significa que viajou por dentro de si mesmo.»

Aconteceu um livro lindíssimo.

Saramago diz que aquele Portugal já, praticamente, não existe.

Resta-nos o livro - «É alguma coisa que anda a dever aos olhos.»

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