quarta-feira, 17 de novembro de 2021

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS



Dito já que começaram as iniciativas que visam registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um parágrafo, aquilo que constitui os milhares de sublinhados que, ao longo dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam a  Biblioteca da Casa.

Hoje peguei em O Ano da Morte de Ricardo Reis, um livro pelo qual tenho uma muito especial simpatia.

Largamente sublinhado, tantas vezes lido, ao ponto de há uns anos ter adquirido um outro volume (20ª edição) porque a 1ª edição estava a desfazer-se, escolhi este pedacinho:  

«… quando Lídia entrou para vir buscar a bandeja afligiu-se, O senhor doutor não gostou, e ele disse que tinha gostado, pusera-se a ler o jornal, distraíra-se, Quer que mande fazer outras torradas, aquecer outra vez o café, Não é preciso, fico bem assim, o apetite também não era grande, entretanto levantara-se e para sossegá-la pusera-lhe a mão no braço, sentia a cetineta da manga, o calor da pele, Lídia baixou os olhos, depois deu um passo para o lado, mas a mão acompanhou-a, ficaram assim alguns segundos, enfim Ricardo Reis largou-lhe o braço, e ela agarrou e levantou a bandeja, as porcelanas tremiam, parecia que se estava dando um abalo de terra com o epicentro neste quarto duzentos e um, mais precisamente no coração desta criada, e agora afasta-se, tão cedo não vai serenar, entrará na copa e pousará a louça, a mão pousará no lugar onde a outra esteve, gesto delicado que há-de parecer impossível em pessoa de tão humilde profissão, é o que estará pensando quem se deixe guiar por ideias feitas e sentimentos classificados, como talvez seja o caso de Ricardo Reis que neste momento se recrimina acidamente por ter cedido a uma fraqueza estúpida, Incrível o que eu fiz, uma criada, mas a ele o que lhe vale é não ter de transportar nenhuma bandeja com louça, então saberia como podem tremer igualmente as mãos de um hóspede. São assim os labirintos, têm ruas, travessas e becos sem saída, há quem diga que a mais segura maneira de sair deles é ir andando e virando sempre para o mesmo lado, mas isso, como temos obrigação de saber, é contrário à natureza humana.»

Legenda: pintura de Jakub Schikaneder


1 comentário:

Seve disse...

Gostei muito do MEMORIAL DO CONVENTO mas talvez ainda mais do ANO DA MORTE DE RICARDO REIS - que grande livro-!