domingo, 20 de fevereiro de 2022

DAISY MILLER



Chega uma altura das nossas vidas em que nos damos conta de que conhecemos mais pessoas mortas do que vivas. 

Esta afirmação, que cito de memória, não é minha, mas sim de um dos personagens do filme “La Chambre Verte” (1978), do François Truffaut.

Na parte que me toca, não obstante tantos ente queridos já terem partido (pais, irmãos, sogros, amigos, …), tenho a sorte de ainda ter a meu lado muita e boa gente que, até agora, nunca me deixou ficar com essa terrível sensação.   

Mas no que respeita ao Cinema, a música é outra. Quase todos os grandes Cineastas através dos quais aprendi a amar o Cinema já partiram há muito, e isto para já não falar dos mais veteranos, aqueles que já por cá não andavam quando eu comecei a saber o que era o Cinema e de cuja morte nem sequer dei conta.

É claro que subsistem alguns resistentes, uns que ainda se mantêm em atividade (Scorsese, por exemplo) e outros que já não dão notícias há muito tempo (Coppola, Wenders, David Lynch, Wong-Kar-Wai, …), e também aqueles que prometem muito, mas ainda não o suficiente para que os possamos considerar “muito lá de casa”, na feliz expressão do João Bénard da Costa.  

Vem tudo isto a propósito do recente falecimento do Peter Bogdanovich, no passado dia 6 de Janeiro.


O escriba de serviço no “Público” assinalou e efeméride considerando Bogdanovich “um dos maiores realizadores do Séc. XX”, disparate que me levou a deixar-lhe um pequeno comentário no “on line”, coisa que raramente faço. 

É claro que Bogdanovich nunca foi um dos “maiores” e que na lista dos grandes filmes do século passado apenas um filme por si realizado encaixa de uma forma mais ou menos consensual: “The Last Picture Show”, de 1971, que por cá se estreou no Caleidoscópio, no Jardim do Campo Grande, com o nome de “A Última Sessão”. Embora eu, a título muito pessoal, também acrescente “Daisy Miller” (1974) a essa lista, como adiante explicarei, que até me parece ter envelhecido melhor do que o outro.

O próprio Bogdanovich seria o primeiro a rir-se com tal designação, ele que logo no seu primeiro filme (“Targets”, 1971), no qual também participa como ator no papel de um realizador de Cinema que procura convencer o velho Borlis Karloff a voltar aos écrans, tem a preocupação de afirmar, enquanto revê um velho filme do Howard Hawks na televisão, que “os bons filmes já foram todos feitos”. 

Embora a simpatia pessoal não fosse, ao que consta, uma das principais características da sua personalidade, Bogdanovich era, para mim, um personagem importante no mundo do Cinema e “simpático” é o adjetivo que gosto de colar a muitos dos seus filmes.

De onde vem, então, esta minha particular afeição para com ele?

Dos filmes, em primeiro lugar. Ou, melhor dizendo, de alguns dos seus filmes, já que a sua Obra me parece ser muito desequilibrada, na qual, a par de grandes filmes, coabitam muitos outros que não tenho grande vontade de rever, sendo que um deles até o deixei a meio, de tal maneira me estava a irritar: por exemplo, “At Long Last Love” (1975), em que pôs Burt Reynolds a cantar Cole Porter,  “Illegally Yours” (1988) e “Noisses Off” (1992), o tal que ficou a meio. Mas até é provável que lhes venha a dar uma segunda oportunidade, porque às vezes estes preconceitos alteram-se com o tempo e com a idade.


Depois, e uma coisa de que se fala muito pouco, pela qualidade da música dos seus filmes. “A Última Sessão” é, de princípio ao fim, pautado pela música de Hank Williams.  “Lua de Papel” (1973), em termos de recurso aos “standards” da música popular americana dos anos 30, está ao nível dos melhores filmes de Woody Allen, o grande especialista nesta matéria. Em “Romance em Nova York” (“They All Laughed” – 1981) e “Illegally Yours”, a eleita é a “Música Country” (e ambos contém canções de Johnny Cash), uma das paixões do realizador, que dedicou ao tema um filme inteiramente passado em Nashville (“The Thing Called Love – 1993), um dos primeiros de Sandra Bullock e o último de River Phoenix).


Depois do Bogdanovick realizador, vem o Bogdanovich crítico/divulgador.

Com efeito, o amor de Bogdanovich pelo Cinema era tal que chegou a afirmar que “comecei a escrever para poder ver filmes de borla – foi essa a única razão. Juro!” (1). Uma vez François Truffaut disse precisamente a mesma coisa…   

Ainda muito jovem, Bogdanovich notabilizou-se por dar a conhecer a obra dos grandes Clássicos do Cinema Americano, os Hawks, os Fords, os Dwans, os Langs (que não é americano, mas filmou quase 30 anos na América). E essas homenagens fê-las ele primeiro como Programador de Cinema, organizando ciclos, depois como Crítico e como Escritor/entrevistador, dedicando-lhes muitas obras que são, hoje, clássicos do género. E prosseguiu essa mesma homenagem também como Realizador, já que é possível catalogar quase cada um dos seus filmes como uma homenagem a um género específico desse Cinema Clássico Americano


Mas, infelizmente, poder-se-á afirmar que a Obra de Bogdanovich é a prova acabada de que, muitas vezes, transmitir o Amor que nos vai na Alma nem sempre é tarefa fácil. É que essas homenagens em Cinema, diga-se de passagem, sem sempre foram plenamente conseguidas, sobretudo no que respeita à “screwball comedy”, como se Bogdanovich se sentisse muito mais à-vontade a evocar o Ford de “As Vinhas da Ira” do que o Hawks de “Bringing Up Baby”/”As Duas Feras”.    

Para além disto (que já não é pouco…), sempre gostei muito de ouvir Bogdanovich falar sobre Cinema, nos inúmeros documentários em que participou e/ou realizou, a começar por esse delicioso “Directed By John Ford” (realizado em 1968 e remontado uns anos mais tarde) e continuando com os dedicados a Chaplin e a Buster Keaton. E o último filme que vi dele, poucos dias antes da sua morte, até foi um documentário, não sobre Cinema, mas sobre Música: o que dedicou a Tom Petty, em 2007.

 Gostava, igualmente, de ler as suas crónicas, quer as primeiras da revista “Esquire”, quando ainda vivia em Nova Iorque, quer as que escreveu já em Los Angeles, algumas das quais foram, mais tarde, publicadas sob o título de  “Pieces of Time”, que em boa hora, ia eu nos meus trinta e poucos anos, até teve direito a tradução portuguesa. 


Já perceberam bem porque não me faltam motivos para gostar de Peter Bogdanovich, a quem fiquei a dever conhecer um pouco melhor as obras de John Ford, Fritz Lang, Allan Dwan e Orson Welles, para me cingir aos livros que dele tenho.

Mas a verdade é ainda tenho um outro motivo de gratidão para com ele. 

Parece que, à sua época, o filme foi um fracasso de crítica e de bilheteira, mas eu desde a primeira hora que fiquei encantado com “Daisy Miller”, que realizou em 1974, e que vi no saudoso Apolo 70, se a memória não me falha. 

“Daisy Miller” é um “filme de época”, baseado na obra homónima de Henry James publicada em 1878 e alvo de uma nova edição revista em 1909. É o único verdadeiro “filme de época” de Bogdanovich, e costumo dizer que está para a sua obra como “A Idade da Inocência” (1993) está para a de Scorsese. E se quisermos entrar no jogo de saber quem é que Bogdanovich pretende homenagear com este filme, eu direi que é o Orson Welles de “The Magificent Ambersons”/ “O Quarto Mandamento” (1942).


Como tantas vezes sucede na obra de Henry James, o filme é uma oposição entre dois mundos, um aparentemente mais frívolo e libertino (a América) e outro onde o peso dos bons costumes e das convenções sociais ainda imperam fortemente (a Europa, mais concretamente a Inglaterra). Para além disso, o filme ilustra, igualmente, uma oposição de classes no interior da própria América, entre uma suposta “aristocracia” mais antiga e mais clássica (como se os primeiros pioneiros na América tivessem alguma coisa de aristocratas…!) e uma nova burguesia muito endinheirada, mas pouco culta. 

“Daisy Miller” é um filme nostálgico, um melodrama triste e suave, um “filme de amor” sem um único beijo e sem um único abraço, onde só contam os olhares. Um Amor falhado, uma oportunidade perdida, mas daquelas que nos deixam o resto da vida a pensar nelas…  Acaba mal, termina num cemitério e já sabem que, para mim, filmes que comecem ou acabem em cemitérios é meio caminho andado…

A fotografia é fabulosa, a reconstituição da época excelente, os locais da rodagem belíssimos, e penso que Cybill Shepherd nunca esteve tão adorável como neste filme.  

E, embora já me tenha esticado demasiado, começamos a aproximar-nos, agora, de mais um dos pretextos para este texto.


Já vos falei muitas vezes desses meus súbitos desejos de visitar lugares que encontro nos filmes. 

Esse desejo nada tem a ver com a mera “beleza turística” desses locais. Tenho visto paisagens fabulosas em filmes descartáveis, e essas belezas entram-me por um olho e saem pelo outro.

Para eu sentir essa urgência de visita é necessário que o filme me diga alguma coisa. Não tem de ser uma obra-prima e às vezes uma ou outra cena de um filme até fracote é suficiente para me ficar a mexer na cabeça. Já uma vez vos contei que tive a certeza de que iria fazer a estrada costeira de Big Sur, na Califórnia, única e simplesmente depois de ter visto as imagens iniciais do “The Sandpiper”, do Vincente Minnelli, que nem é um grande filme… E acabei por satisfazer esse desejo duas vezes, com um intervalo de vinte e sete anos

É uma forma de continuar a amar esses filmes, de uma maneira mais pessoal. De os levar sempre comigo num canto da memória. Se quiserem, um desejo “voyeurista” de estar a espreitar ali  mesmo, onde as coisas aconteceram: ver John Wayne a pegar em  Natalie Wood ao colo no “The Searchers”; estar ali escondido quando Kim Novack se lançou às águas da baia de São Francisco, no “Vertigo”; ter acabado de tomar o banho -  que na realidade tomei -  no riacho de Cathedral Rock, em Sedona,  imediatamente antes do Delmer Daves ter feito aquele fabuloso plano do James Stewart a abraçar a Deborah Paget no “The Broken Arrow”, um dos mais belos de todo o “western”.

Pois com “Daisy Miller” aconteceu-me exatamente o mesmo. 

Durante muitos anos aquele castelo à beira de um lago por onde passeava uma rapariga vestida de branco com uma  sombrinha na mão, que parecia saída da neblina de um quadro do Noronha da Costa,  povoava os meus sonhos de viagem. E o barco a vapor do séc. XIX a atravessar o lago… E o “Hotel des Trois Couronnes”…

Eu já vos disse que o desejo não é simplesmente “turístico”, mas se o fosse até teria o seu perfeito alibi cultural. Ora vejam lá como o próprio Henry James, qual guia turístico, inicia a sua novela: 

“Na pequena cidade de Vevey, na Suiça, existe um hotel particularmente confortável; na verdade, existem muitos hotéis, pois a receção de turistas constitui o negócio dessa localidade que, como muitos viajantes recordarão, se situa à beira de um lago invulgarmente azul – um lago que qualquer turista deverá visitar.” (2)

O ambiente desses hotéis é descrito por Henry James nos seguintes termos: “Há um esvoaçante cruzar de jovenzinhas vestidas à moda, um sussurrar de folhos de musselina, um matraquear de música de dança durante a manhã, o som de agudas vozes a qualquer hora”. (3) E no que respeita ao “Trois Couronnes”, onde o livro/filme decorrem, acrescenta ainda: “impecáveis criados alemães que mais parecem secretários de legação; princesas russas sentadas no jardim; rapazinhos polacos passeando, levados pela mão, com os seus preceptores; a vista do nevado cume do Dent du Midi e as torres pitorescas do Castelo de Chillon”. (4)

Se a cidade é Vevey, o lago “invulgarmente azul” é o Lago Léman e o “Hotel des Trois Couronnes” está lá, à beira do lago, desde 1842.


Quanto ao castelo das “torres pitorescas”, trata-se do “Chateau de Chillon”, que passa por ser um dos monumentos suíços mais visitados. Está carregadinho de História, mas não vos vou maçar com isso porque quem não a conhecer e estiver interessado tem facilmente meio de lá chegar em muito pouco tempo. Acrescentarei apenas que, pela sua beleza arquitetónica e pela sua localização privilegiada nas margens do lago, envolvido pela neblina que por vezes das suas águas emana, este castelo proporciona uma “visão romântica” por natureza, e por isso, ao longo dos tempos, inspirou tantos poetas de tantas nacionalidades. O próprio Bogdanovich parece bem consciente do poder dessa visão porque, numa entrevista que concedeu por ocasião do lançamento do filme, afirma que para ele “era muito importante que Chillon fosse algo que o público recordasse com um certo grau de prazer”. (5)

Todo este cenário é belíssimo, como poderão ver por algumas fotografias que vos mostro. Com Cybill Shepherd a passear nele vestida de dama antiga, imaginem o que não será…

Apenas um terço do filme se passa na Suíça, decorrendo o restante em Roma. Também por lá andei à procura daquele jardim no cimo de uma colina que aparece no filme. Subi a várias colinas, mas em nenhuma delas reencontrei a memória cinéfila do filme, um lugar que só mais tarde vim a saber tratar-se da Colina do Pincio, que nem era muito longe dos jardins da Villa Borghese, por onde andei. Seria  sempre um bom pretexto para voltar a Roma, se ela necessitasse de pretextos desses para ser (re)visitada…      

Por “Daisy Miller” e por tudo o mais que aqui mencionei sinto-me muito grato a Peter Bogdanovich, e é com prazer que lhe dedico esta pequena homenagem.  

Que descanse em Paz, signifique lá isso o que significar…



  1. Peter Bogdanovich, “Nacos de Tempo”, Livros Horizonte, 1986, pág. 12
  2. Henry James, “Daisy Miller”, Editora Arcádia (1977), pág. 19
  3. Idem, pág. 20
  4. Idem
  5. Entrevista a Martin Rubin feita em 18 e 19 de Fevereiro de 1974, constante de (2), pag. 160

 

PS: 

Por feliz coincidência, a cidadezinha de Vevey, na Suíça, foi o lugar escolhido por Charles Chaplin para viver os últimos vinte e cinco anos da sua vida, o que será, certamente, pretexto para outras conversas.  

PS2:

Para perceberem que o prazer que este filme me proporciona não esmoreceu com a passagem do tempo, ao revê-lo agora em DVD apeteceu-me roubar algumas fotografias à televisão.







Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

Sem comentários: