quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

UMA CHUVA DURA VAI CAIR?


 Tal como diria António Gedeão, sem sequer ser ouvido, saí do ventre da minha mãe, quando ainda pairavam nos ares, os últimos tiros de espingardas, os últimos tiros de canhões da Segunda Guerra Mundial.

Quem por aqueles tempos desce ao mundo, só poderia ser contra guerras.

Sejam elas quais forem.

Lembrar uma frase de José Saramago tirada de uma sua carta, datada de 15 de Maio de 1962 para José Rodrigues Migueis

«O mundo está muito complicado, mas não o acho suficientemente absurdo para perder a esperança.»

Para o bem e o mal o que hoje sou e penso, devo-o a muita gente.

Bob Dylan está metido nessa gente.

Apesar de um certo desencanto quando há uns bons anos apareceu por aí dizer que «A palavra mensagem é triste, triste como uma hérnia.», «Ninguém gosta de ser definido por aquilo que os outros pensam.», «Queria ter uma vida normal e poder levar os filhos à escola.»

Manuel António Pina num poema seu: «O café agora é um banco, tu professora de liceu; Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu. Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes, e não caminhos para andar como dantes.»

Lembro-me de uma conversa, nos idos de 67, com um dos colaboradores do Em Órbita, falha-me, agora, o nome, quando, a determinada altura, disse-me  de Dylan: é um narcisista convicto, um genial cabotino, no sentido intelectual do termo.

 Fiquei, assim meio aparvalhado, a olhar para ele, manifestei-lhe o meu desacordo e acrescentei que a definição ainda poderia ser entendida por gente que lesse ou ouvisse Dylan aprofundadamente, mas não pelo vulgar ouvinte.

 O meu interlocutor viu, de repente, que não valia buscar outros argumentos, perder mais tempo com o ceguinho que eu, era por Dylan.

E ele sabia, porque lia e ouvia Dylan atentamente, que chegariam os tempos dos órfãos de Mr. Zimmerman e eu ficava-me ingenuamente convencido que. com Dytan, tinha respostas para (quase) tudo.

Bom, teremos sempre Joan Baez a dizer de Dylan:

« Ele é o ser humano mais complexo que conheci. Eu pensei que seria capaz de entendê-lo. Desisti. Tudo o que sei é o que ele nos deu.»

Porque, para além de mágoas e miudezas, tudo o mais, existe uma verdade inquestionável: Bob Dylan fez das mais belas canções da história da música, canções que se podem ouvir em qualquer tempo e fez com que muitos passassem a olhar, de um outro modo, os tempos que se exigia que mudassem.

Nestes dias que vão correndo, pegar no segundo álbum de Bob Dylan, The  Freewheelin’Bob Dylan (1963) que tem Blowin’in the Wind – quantas mortes serão precisas até que saiba que demasiadas pessoas morreram - e  Masters of War que irei reproduzir. Outra faixa do álbum é a Hard Rains A –Gonna Fall que reflecte a angústia, em Outubro de 1962, que Dylan sentiu aquando dos misseis de Cuba, braço de ferro entre Kennedy e Khrushchev, ao ponto de pensar não lhe restar muito mais tempo para escrever outras canções.

A tradução da canção é de Angelina Barbosa e Pedro Serrano em Canções Volume I:


Vinde, senhores da guerra

Vós que construís todas as armas

Vós que construís os aviões da morte

Vós que construís as grandes bombas

Vós que vos escondeis atrás de muros

Vós que vos escondeis atrás de secretárias

Eu só quero que vocês saibam

Que consigo ver através das vossas máscaras

 

Vós que nunca fizestes nada

Senão construir para destruir

Vós brincais com o meu mundo

Como se fosse o vosso brinquedinho

Vós colocais-me uma arma na mão

E escondei-vos dos meus olhos

E virais as costas e fugis para bem longe

Quando voam as balas velozes

 

Como o Judas de outrora

Vós mentis e enganais

Uma guerra mundial pode ser ganha

Vós quereis que acredite

Mas vejo através dos vossos olhos

E vejo atrvés da vossa mente

Como vejo através da água

Que se escoa pelo cano abaixo

 

Vós firmais os gatilhos

Para os outros dispararem

Depois recuais e ficais a ver

Quando a contagem de mortes se eleva

Vós escondei-vos na vossa mansão

Enquanto o sangue dos jovens

Lhes escorre dos corpos

E se enterra na lama

 

Vós lançastes o pior dos medos

Que alguma vez se pode proferir

Medo de trazer filhos

Ao mundo

Por ameaçardes o meu filho

Por nascer e sem nome

Não valeis o sangue

Que vos corre nas veias

 

Quando é que eu sei

Para falar o que não devo

Vós podeis dizer que sou ignorante

Mas uma coisa há que eu sei

Ainda que seja mais novo que vós

Nem mesmo Jesus jamais

Perdoaria o que fazeis

 

Deixai-me fazer-vos uma pergunta

O vosso dinheiro é assim tão bom

Comprar-vos-á o perdão

Achais que poderia

Penso que descobrireis

Quando a vossa morte vier cobrar o seu direito

Que todo o dinheiro que ganhastes

Jamais vos resgatará a alma


E espero que vocês morram

E a vossa morte chegue depressa

Seguirei o vosso caixão

Na pálida tarde

E ficarei a ver até vos baixarem

Ao vosso leito de morte

E vou vigiar a vossa campa

Até ter a certeza que estai mortos

 


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