segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

PANDORA, A MULHER QUE POR AMOR SE DEIXOU MORRER


            “The measure of love is what one is willing to give up for it”

                             (Do filme  “Pandora and the Flying Dutchman”


Numa praia algures no Sul de Espanha, pescadores retiram as suas redes do mar e alguém repara que, juntamente com a faina diária, foram retirados das águas dois corpos entrelaçados de um homem e de uma mulher.

Alertadas pelo estranho acontecimento, que faz tocar os sinos da igreja, as gentes do povoado ocorrem à praia, entre elas um velho arqueólogo que irá assumir o papel de narrador. É então que a história nos começa a ser contada, em “flashback”, e a primeira coisa que o narrador nos diz é o que escolhi para epígrafe, ou seja, que a medida do amor é tudo quanto estejamos dispostos a perder por ele. E desde logo ficamos a suspeitar que, na história que nos vai ser contada, alguém, por Amor, esteve disposto a perder muita coisa…

A história será a de Pandora Reynolds, uma cantora americana que percebemos ter pisado os palcos de Londres e de Nova Iorque, mas que não fazemos a mínima ideia (nem jamais ficaremos a fazer…) do que faz perdida naquele porto piscatório de Esperanza, no Sul de Espanha. Nem ela nem a estranha “entourage” de amigos que a acompanham e que mais parecem exemplares de uma geração perdida saída de um romance de Scott Fitzgerald.

Na primeira vez que a vemos, Pandora está sentada ao piano com um fabuloso vestido prateado a tocar e a cantar o “How Am I to Know”, de Jack King e Dorothy Parker:

“But oh,

How am I to know

Can it be that love

Has come to stay here?”


Se está ansiosamente à espera de um amor, não é, certamente, o de um amigo poeta que a acompanha e que a pede em casamento (percebemos que pela enésima vez…) o que ela, uma vez mais, recusa, levando-o, pouco depois, a suicidar-se com veneno misturado num copo de vinho.

Pandora não demonstra qualquer arrependimento pelo sucedido, e esta é a primeira de muitas desgraças que acontecerão à sua volta.

O poeta suicida-se, um corredor de automóveis que durante dois anos preparara uma viatura para tentar bater um recorde de velocidade atira viatura do alto de uma falésia, apenas porque ela assim o pedira como prova do seu amor, um toureiro morre em plena praça, …

À primeira vista Pandora parece-nos ser uma mulher má, muito má…  Embora suspeitemos de que é alguém que nunca foi muito feliz nos amores, não conseguimos entender o que lhe vai na Alma. Mas a verdade é que também logo no início do filme o narrador já nos avisara que “to understand one human’s soul is like trying to empty the sea with a cup”.

Não vos irei maçar contando-vos todas as peripécias do filme, mas dir-vos-ei, apenas, que ele entrelaça o mito grego de Pandora com a lenda do “Holandês Voador”, que terá nascido há séculos atrás e que foi celebrada pela Cultura europeia em muitas obras, a principal das quais talvez tenha sido a ópera de Wagner “O Navio Fantasma”.

Na mitologia grega Pandora foi a primeira mulher, aquela que tinha em seu poder a boceta que, uma vez aberta, deu origem a todas as desgraças que vieram a ocorrer no Mundo. Mas Pandora ainda foi a tempo de fechar a caixa, de forma a que, dentro dela, permanecesse a Esperança.

O “Holandês Voador” matou a sua mulher no Séc XVII, acusando-a, injustamente, de infidelidade. Por isto, e por ter blasfemado contra Deus, foi condenado à maldição da vida eterna, vagueando sozinho no seu veleiro durante séculos como um fantasma, e sendo-lhe apenas permitido vir a este Mundo de sete em sete anos, por períodos de muito curta duração. Se nalgum desses momentos na companhia dos vivos uma mulher, por amor, aceitasse morrer por ele, a sua maldição terminaria.


Já se percebeu quem será a Pandora da história e o Holandês Voador chegará pouco tempo depois, fundeando o seu magnífico veleiro ao largo de Esperanza.

E se atrás referi que a Esperança foi a única coisa que ficou dentro da boceta de Pandora, é por ser a Esperança o fio condutor que parece atravessar todo o filme. Esperança do Holandês em encontrar a mulher que o liberte da sua maldição; Esperança de Pandora em encontrar o tal Amor Verdadeiro que parece evocar na sua canção, logo no início do filme. E também não será por mero acaso que tudo se passa num lugar imaginário chamado Esperanza…

É claro que a Esperança se concretiza e que Pandora e o Holandês se irão apaixonar perdidamente um pelo outro e é também claro que ela, entretanto conhecedora de toda a sua história, irá aceitar conceder a sua vida para o libertar da maldição que há séculos o atormenta. E é abraçados que os iremos encontrar, já no final do filme, quando ela lhe pergunta quanto tempo ainda lhes resta. Um ano? Um mês? Uma semana? Um dia…? Seria tão bom se ainda houvesse algum tempo mais…! O Holandês não lhe responde, mas olha para o lado e vê que o último grão de areia na ampulheta que simbolizava a sua vida se esfumou. E, nesse preciso momento, uma enorme tempestade se levanta e o mar acabará por engolir o veleiro nas suas águas.

Já perceberam, agora, que são deles os corpos entrelaçados que os pescadores retiraram do mar no início do filme.

A quem me vier dizer que não é possível dois amantes morrerem abraçados, andarem a vaguear pelas águas e virem dar à costa assim abraçados, eu direi que é, sim senhor … É essa a metáfora do Amor real, infinito e fora do tempo a que Pandora alude nas suas últimas palavras …. Como se o Verdadeiro e Único Amor só pudesse ser aquele que termina na morte dos amantes.


É por isso que Ado Kyrou, célebre teórico do surrealismo no cinema, afirma que “Pandora est la seule femme farouchement surréaliste de tout le cinema”. E acrescenta que “jamais Ava Gardner ne fut plus belle, jamais je n’ai senti aussi intensement la disponibilité de la femme pour l’amour fou”*.   

Pandora – acabámos de o perceber -  é Ava Gardner, o Holandês é James Mason (ah, a voz de James Mason neste filme…!)  e os restantes são, maioritariamente, atores ingleses hoje pouco conhecidos, já que o filme foi uma produção inglesa. O realizador foi Albert Lewin, que não deixou uma filmografia muito extensa (apenas seis filmes), mas que era conhecido por ser um dos realizadores americanos mais cultos e eruditos.

O filme é um objeto estranho, por vezes até bizarro, banhado por um clima onírico, fantástico e surreal e impregnado de uma poética de “amor louco” tão cara ao seu autor, que era amigo íntimo dos principais Surrealistas franceses da sua época.

Acabei de vos dizer que Pandora era Ava Gardner. Mas não… É muito mais do que isso…  É Ava Gardner pela primeira vez em “Technicolor”, numa beleza fulgurante como raras vezes a vimos depois, ao ponto de João Bénard da Costa ter escrito que “ninguém que não tenha visto Pandora pode alguma vez perceber quem foi Ava Gardner” **.

Chegados aqui, provavelmente já terão percebido que tenho uma “pancada” muito especial por este filme, eu que tanto aprecio melodramas e “filmes de amor”. É verdade que sim e que ele seria um dos que, sem pestanejar, levaria para a tal ilha deserta.

Mas, contada a história do filme, deixem-me também contar-vos agora a história desta minha relação muito especial com Pandora.


Um dia, já lá vão vinte e três anos, fui a Sitges, perto de Barcelona, participar num Congresso de Responsáveis de Recursos Humanos da minha Empresa, uma multinacional francesa. Fui acompanhado, nessa viagem, por um outro colega que, para além disso, era também meu amigo pessoal de longa data.

O Congresso teria lugar de quarta a sexta-feira de manhã, pelo que de imediato imaginámos a possibilidade de permanecer por aquelas bandas durante o fim de semana e usufruir das belas paisagens e da boa gastronomia da Catalunha.

Para não ficarmos sozinhos, desafiámos a juntarem-se a nós a minha Mulher e a namorada do meu amigo. E, como sempre gostávamos de juntar a um fim-de-semana gastronómico um alibi cultural, decidimos fazer o circuito do Salvador Dali na Costa Brava, começando pela sua casa de campo (o Castelo de Púbol), prosseguindo para o Museu Dali de Figueres e acabando na casa de praia de Port Lligat.

O fim-de-semana correu lindamente, e não foi só feito de petisqueira e de Dali. Lembro-me, por exemplo, de uma magnífica exposição de Raoul Dufy vista no Museu Picasso de Barcelona. Mas não é esse o principal tema desta história.

A meio da tarde de sexta-feira fomos buscar as nossas companheiras ao Aeroporto de Barcelona e seguimos viagem para Norte, pela costa, em direção a França.

Não tínhamos programado um poiso concreto para dormida e navegávamos ao sabor do vento. Mas, após algumas tentativas goradas, aportámos a um lugarejo de que nunca tínhamos ouvido falar chamado Tossa de Mar, uma estância balnear de pequena dimensão situada entre duas colinas que tinha, numas das suas extremidades, um pequeno hotel localizado mesmo em cima do areal que nos seduziu.

Com todas as voltas que demos já era tarde e tempo apenas para fazer o “check-in”, depositar as malas nos quartos e zarpar em busca de um restaurante para jantar. Relativamente perto encontrámos um que nos pareceu agradável, também junto à praia e com uma enorme janela voltada para o mar. O jantar foi prolongado porque a cataplana que pedimos levou o seu tempo a confecionar, a conversa fluía agradavelmente, bebemos bem  e não tínhamos qualquer pressa, uma vez que o problema do alojamento já estava resolvido.  A vantagem de se estar em Espanha é que o que para nós parece ser tarde, para eles é muito cedo. E ainda me lembro muito bem que, para escândalo dos meus companheiros de viagem, pedi para darem um calorzinho ao caldo que sobrou da cataplana e, para assentar, comi-o como se de uma sopinha se tratasse…

Quando saímos era já muito tarde e as senhoras não demonstraram grande empenho em dar um passeio pelo povoado, pelo que regressámos ao hotel. Aí chegados, o bar já se encontrava encerrado, o que não nos impediu de nos servirmos do que nos apetecesse, tal como na Receção nos tinham aconselhado. Se bem me lembro, enchi um copo generoso de uma Reserva Especial Carlos I que por lá havia, acendi um charuto e sentei-me na varanda do meu apartamento, com as pernas esticadas em cima de uma cadeira, enquanto a minha Mulher, já cansada da viagem, se foi deitar.


Por ali me deixei ficar durante muito tempo. A noite de finais de Junho estava aprazível, o vinho do jantar, o conhaque e o fumo do charuto a esvoaçar pelo ar começaram a produzir o seu efeito, fazendo com que de mim se apossasse uma agradável moleza e uma sensação de bem-estar, embalada pelo bater das águas do mar ali tão perto, que se deixavam ouvir até por um surdo como eu.

Ao fundo na paisagem via a outra ponta da praia, as luzes do povoado e, no alto de uma pequena colina sobre o mar, aquilo que me pareciam ser as ruínas de um velho castelo meio destruído pelo tempo, iluminadas de um amarelo quente que dava a todo aquele cenário um ar de conto medieval.

Nunca mais de esqueci dessa noite e ainda hoje, tendo voltado já tantas vezes a Tossa de Mar, ela não me sai da cabeça.

Uns tempos mais tarde, já em Lisboa, fui à Cinemateca rever “Pandora”, o filme de Albert Lewin que me recordava de já ter visto, alguns anos antes, na televisão. Mas ver esse filme na televisão e, ainda por cima, a preto e branco, como me lembrava, equivale a nunca o ter visto… De repente, dei um salto na cadeira…  Embora o povoado estivesse muito diferente daquele que tinha visitado, a praia me parecesse muito mais larga e o castelo mais bem conservado, parecia-me ser Tossa de Mar o lugar onde o filme se passava. Naquele tempo não havia Internet e uma dúvida que hoje se dissipa em poucos minutos na altura deu-me um trabalhão a esclarecer. Vasculhei tudo quanto tinha em casa e lá acabei por encontrar a confirmação de que aquele povoado que no filme se chamava Esperanza era, efetivamente, Tossa de Mar.


Se já estava apaixonado pela terriola antes de a associar ao filme, depois desse dia ainda mais apaixonado fiquei.

Depois disso, como vos disse, tenho voltado frequentemente a Tossa de Mar e fiquei a saber muito mais coisas acerca do filme e da sua rodagem. Umas com interesse, outras nem por isso.

Muito embora isso seja um “fait divers” que não tem qualquer relevância para o interesse do filme, também fiquei a saber, por exemplo, que não é possível falar dele sem evocar a história de Mário Cabré, o toureiro espanhol que também entra no filme (e o estraga nas partes em que entra…) e com o qual se conta que Ava Gardner terá andado enrolada durante as filmagens, ao ponto de obrigar Frank Sinatra, seu namorado na altura e futuro marido,  a vir de propósito dos Estados Unidos para pôr ordem na caserna. Deu brado, na época, nas revistas “côr-de-rosa”…

Nas suas “Memórias” Ava trata Cabré como um “espanhol insuportável”, mas sempre vai dizendo que “cometi um simples erro que se transformou numa asneira de grandes proporções. Depois de uma daquelas noites espanholas cheias de estrelas, de danças e de copos, acordei no dia seguinte ao lado de Mário Cabré. Foi a primeira e última vez…”. ***


Acontece a muito boa gente, direi eu… E só tenho pena de não me ter acontecido a mim…!

O filme, esse ficou como um dos meus filmes de cabeceira, como já vos disse.

Lembro-me muito bem que uma vez, num jantar de amigos em minha casa, resolvi passá-lo enquanto ainda estávamos todos à mesa, embora já no final da refeição. Eram os tempos da Bica, a noite estava quente e as janelas escancaradas sobre o rio, de onde subia, de tempos a tempos, uma aragem reconfortante. Conforme o filme ia avançando eu parava a imagem durante muito tempo, mantendo-a como imagem de fundo. Pandora ao piano com aquele fabuloso vestido prateado; Pandora a nado a caminho do navio do Holandês Voador; Pandora já no barco enrolada no pano de uma vela e, depois, no roupão amartelo; Pandora, já no fim do filme, com aquele “inadjectivável” (obrigado João Bénard…!) vestido preto em forma de pontas de lança... Naquele  tempo as senhoras ainda não tinham inventado a peregrina ideia de que o fumo do charuto era uma coisa horrorosa que se entranhava em tudo, até nos cortinados e no seus próprios “soutiens”, pelo que o fumo esvoaçava livremente pela sala enquanto se enchiam e se despachavam  as “flutes” de espumante e se poisava o olhar em Pandora.

Noite memorável, também essa…

Sempre que passo por Tossa de Mar vou ver a estátua de Ava Gardner, no interior do castelo de que vos falei, e prestar-lhe a minha singela homenagem. Nem sempre calha dar-lhe um abraço, mas às vezes acontece…

É que poderá o Holandês Voador ter sido libertado da sua maldição de viver eternamente, mas eu ficarei até ao final dos meus dias assombrado pela visão de Pandora e de Ava Gardner e pela memória daquela noite.

 

*Texto constante de “Albert Lewin”, de Patrock Brion, Éditions Durante (2002), pág. 175

**  ”Escritos Sobre Cinema”, Tomo I, 4º Volume, Edições da Cinemateca (2021), pág. 127

***  ”Ava – A Minha História”, Publicações Europa-América (1990), pág. 133


Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

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