terça-feira, 22 de novembro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 Este livro, Memorial do Convento poderia começar como tantos e tantos outros livros começam: Era uma vez…

 Aliás Saramago, ou alguém por ele, resume-o assim na contra capa:

«Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez.»

 O livro é um longo desfiar de maravilhas, um prazer enorme, bonitas histórias de amor, «... Só uma mulher que está deitada num restolho com um homem em cima de si, cuida ver qualquer coisa a passar no céu, mas julga serem visões próprias de quem está a gostar.»

Estavam a ser sobrevoados pela Passarola de Bartolomeu de Gusmão,

«uma história que nos deixa sem fôlego», no sábio dizer de Armando Silva Carvalho.

Ainda Saramago:

 « Atraiu-me na história do Convento de Mafra o esforço e o sacrifício dos milhares de homens que trabalharam na construção do monumento à vaidade de um rei e ao poder da Igreja.»

 Pegando no livro, a dificuldade está na escolha dos sublinhados que por lá se encontram. Fechou-se o livro, folheou-se como roda da sorte e ficámos na página 75:

«Dorme Baltasar no lado direito da enxerga, desde a primeira noite aí dorme, porque é desse lado o seu braço inteiro, e ao voltar-se para Blimunda pode, com ele, cingi-la contra si, correr-lhe os dedos desde a nuca até à cintura, e mais abaixo ainda se os sentidos de um e do outro despertaram no calor do sono e na representação do sonho, ou já acordadíssimos iam quando se deitaram, que este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na igreja, cuida pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele. Talvez ande por aqui obra de outro mais secreto sacramento, a cruz e o sinal feitos e traçados com o sangue da virgindade rasgada, quando, à luz amarela do candil, estando ambos deitados de costas, repousando, e, por primeira infracção aos usos, nus como suas mães os tinham parido, Blimunda recolheu da enxerga, entre as pernas, o vivíssimo sangue, e nessa espécie comungaram, se não é heresia dizê-lo ou, mais ainda, tê-lo feito. Meses inteiros se passaram desde então, o ano é já outro, ouve-se cair a chuva no telhado, há grandes ventos sobre o rio e a barra, e, apesar de tão próxima a madrugada, parece escura noite. Outro se enganaria, mas não Baltasar, que sempre acorda à mesma hora, muito antes de nascer o sol, hábito inquieto de soldado, e fica alerta a ver retirar-se devagar a escuridão de cima das coisas e das pessoas, a sentir aquele grande alívio que levanta o peito e é o suspiro do dia, o primeiro e impreciso traço grisalho das frinchas, até que um leve rumor acorda Blimunda e outro som começa e se prolonga, infalível, é Blimunda a comer o seu pão, e depois que o comeu abre os olhos, vira-se para Baltasar e descansa a cabeça sobre o ombro dele, ao mesmo tempo que pousa a mão esquerda no lugar da mão ausente, braço sobre braço, pulso sobre pulso, é a vida, quanto pode, emendando a morte. Mas hoje não será assim. Um dia e outro dia perguntou Baltasar a Blimunda por que comia todas as manhãs antes de abrir os olhos, perguntou ao padre Bartolomeu Lourenço que segredo era este, ela respondeu-lhe uma vez que se acostumara a isso em criança, ele disse que se tratava de um grande mistério, tão grande que voar faria figura de pequena coisa, comparando. Hoje se saberá.»

1 comentário:

Seve disse...

Um dos melhores livros da literatura mundial !!!