sábado, 12 de novembro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Por agora, terminamos os sublinhados, que encontrámos, e que José Saramago dedicou aos filmes, aos artistas, aos cinema da cidade onde viveu.

O texto está publicado em O Caderno nº2 e mostra uma curiosíssima memória que desde tenros anos ficou de Charlot, para concluir que não lhe deixou grande coisa.

Curiosamente o poeta José Gomes Ferreira também não era um incondicional adepto de Charlot, preferia Eisenstein, tal co deixou escrito numa crónica publicada, Junho de 193º na revista Imagem:

«Enquanto Charlie Chaplin, com os seus cabelos brancos de palhaço no declínio, o seu sorriso amargo de quem sofre uma dor imaginária, continua a gitar o eterno Charlot, espantalho de pano que infunde respeito ao público e aos poetas líricos, - Eisenstein sorri, cria, não se contenta com o que já está convencionado, afasta-se definitivamente da arte pura e dos seus artifícios pretensiosos.»

Numa destas últimas noites vi na televisão alguns filmes antigos de Chaplin, a saber, dois ou três episódios nas trincheiras da primeira guerra mundial e um filme mais extenso, “The Pilgrim”, que, retoma, com menos felicidade que noutros casos, o tema recorrente de um Chaplin sem culpas procurado pela polícia. Não sorri nem uma única vez. Surpreendido comigo mesmo, como se tivesse faltado a uma jura solene, dei-me ao trabalho de tentar recordar, tanto quanto me seria possível oitenta anos depois, que risos, que gargalhadas me terá feito soltar Charlot nos dois cinemas populares de Lisboa que frequentava quando tinha seis ou sete anos. Não recordei grande coisa. Os meus ídolos nessa época eram dois cómicos suecos, Pat e Patachon, que esses, sim, eram, para mim, autênticos campeões da gargalhada. Continuando a reflectir com os meus botões, sempre bons conselheiros porque em princípio não mudam de casa nem de opinião, cheguei à inesperada conclusão de que Chaplin, afinal, não é um cómico, mas um trágico. Repare-se como tudo é triste, como tudo é melancólico nos seus filmes. A própria máscara chaplinesca, toda ela em branco e negro, pele de gesso, sobrancelhas, bigode, olhos como pingos de alcatrão, é uma máscara que em nada destoaria ao lado das representações plásticas clássicas do actor trágico. E há mais. O sorriso de Chaplin não é um sorriso feliz, pelo contrário, aventuro-me a dizer, sabendo ao que me arrisco, que é tão inquietante que ficaria bem na boca de qualquer drácula. Se eu fosse mulher, fugiria de um homem que me sorrisse assim. Aqueles incisivos, demasiado grandes, demasiado regulares, demasiado brancos, assustam. São um esgar no enquadramento rígido dos lábios. Sei de antemão que pouquíssimos vão estar de acordo comigo. O caso é que, uma vez que foi decidido que Chaplin é um actor cómico, ninguém lhe olha para a cara. Creiam no que lhes digo. Olhem-no de frente sem ideias feitas, observem aquelas feições uma por uma, esqueçam por um momento a dança dos pezinhos, e digam-me depois o que viram. Chaplin levaria todos os seus filmes a chorar se pudesse.

José Saramago em O Caderno, 2º volume 

2 comentários:

Seve disse...

CHARLOT é cinema!

Sammy, o paquete disse...

Tenho a mesma ideia e não consigo encontrar, leve explicação que fosse, a «embirração» que dois homens sensíveis - e que tanto admiro! - tiveram com Charlot ou Charles Chaplin. Porque sei que há quem goste de Charlot e tenha desagrados vários com as cedências que Chaplin, a caminhar para um final de vida, fez a Hollywood que, noutros tempos, o trataram a pontapé!