sábado, 31 de agosto de 2024

ESTOU AQUI, ESTOU ALI

Não há nada como tomar uma resolução.

Mas há de tomar-se e executar-se; aliás, se o caso é difícil e complicado, pouco a pouco as dúvidas surgidas começam a enlear-se outra vez, a enredar-se... a surgir outras novas, a apresentarem-se as faces ainda não vistas da questão... enfim, se o intervalo é largo, quando a resolução tomada chega a executar-se, a maior parte das vezes já não é por força de razão e de convicção que se faz, mas por capricho, ponto de honra, teima.

Almeida Garrett em Viagens na Minha Terra

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

O SOLITÁRIO

 

Como alguém que por mares desconhecidos viajou,
assim sou eu entre os que nunca deixaram a sua pátria;
os dias cheios estão sobre as suas mesas
mas para mim a distância é puro sonho.

Penetra profundamente no meu rosto um mundo,
tão desabitado talvez como uma lua;
mas eles não deixam um único pensamento só,
e todas as suas palavras são habitadas.

As coisas que de longe trouxe comigo
parecem muito raras, comparadas com as suas —:
na sua vasta pátria são feras,
aqui sustém a respiração, por vergonha.


Rainer Maria Rilke em O Livro das Imagens

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

O OUTRO LADO DAS CAPAS


O título, A Rapariga Que Roubava Livros, sempre andou a dançar em redor de mim, por dias e mais dias, até passaram anos.

O filme de Brian Percival, de 2013, baseado no livro, não vi. Talvez um dia aconteça.

Nunca li algum livro de Markus Zusak, escritor australiano, filho de mãe alemã e pai austríaco.

Fiz por esquecer o que, normalmente aparece nas badanas, e que no livro aparece na capa. O New York Times considera-o «brilhante», o The Guardian declara-o como «uma leitura impossível de interromper.»

Ao livro terei que voltar. Houve muita coisa que me escapou.

Já não lerei como sempre li?

Apenas o silêncio. O medo. Ou palavras relacionadas: terror, horror, pânico, pavor, alarme

Max Vandenburg escrevia no seu livro:

«De uma janela da Rua Himmel, as estrelas incendiaram os meus olhos.»

Passados tantos anos que horas serão agora na Faixa de Gaza? 

Ou a eterna busca de flores azuis no deserto.

Ainda Max Vanderburg:

«Silêncio não era sossego nem calma, e não era definitivamente paz.»

OLHAR AS CAPAS


A Rapariga Que Roubava Livros

Markus Zuzak

Tradução Manuela Madureira

Editorial Presença, Lisboa, Fevereiro 2008

Ao chegar à página três sentia a mão dorida.

As palavras eram tão pesadas, pensou ela, mas à medida que a noite foi passando, conseguiu completar onze páginas.

                                     Página 1

            Esforço-me por o ignorar, mas sei que

        tudo isto começou com o comboio e a neve e o

    meu irmão a tossir. Roubei o meu primeiro livro nesse

    dia. Era um manual para cavar sepulturas e roubei-o a

                           caminho da Rua Himmel… 

ÚLTIMAS DISPOSIÇÕES DO H.M. E.

Para começar tirem-me este trapo da cara, que faz cócegas,
e amortalhem nele o meu gato e enterrem-no
ali onde era o meu jardim cromático.

Levem a coroa de latão de cima do meu peito
e atirem-na às estátuas erguidas no entulho,
e ofereçam os laços às putas, para que com eles se enfeitem.

Rezem as orações a um telefone antiquado e sem fio
ou embrulhem-nas num lenço de assoar cheio de farelos
para os estúpidos peixes do charco.

O Bispo que fique em casa e se emborrache,
deem-lhe uma garrafa de rum
(o sermão vai fazer-lhe sede).
E deixem-me em paz com lápides e chapéus altos!
Com o belo basalto pavimentem uma viela
onde ninguém more,
uma Ruazinha para pássaros.

Na minha mala há muito papel amarelo para o meu primo miúdo
fazer com ele avionettes que hão de voar, bonitas, da ponte
e ir mergulhar no rio.


O mais que fica (umas cuecas, um isqueiro, uma linda opala
e um despertador) isso é para oferecer a Calístenes, o trapeiro,
com a devida gorjeta.

Quanto à ressurreição da carne, entretanto, e à vida eterna,
dessas coisas trato eu, se estão de acordo:
É cá comigo, não acham? Então, adeus!

Na banca de cabeceira há ainda alguns cigarros.

Cristovam Pavia

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

POSTAIS SEM SELO


Não gastes o teu tempo a convencer pessoas que não querem ser convencidas.

Luís Paixão Martins

CHIADO: INQUÉRITO-CRIME 6591/88

 

O Incêndio do Chiado deflagrou, por volta das 5 da manhã, do dia 25 de Agosto de 1988, nos Armazéns Grandella, destruindo 18 edifícios e uma área que equivale a oito campos de futebol.

Neste blogue existe a etiqueta «Lisboa Incêndio», mas, hoje, vamos servir-nos do trabalho que Raquel Moleiro publicou no Expresso de 25 de Agosto de 2018, 30 anos depois do incêndio, considerado um crime mas cujo processo, por falta de provas, foi arquivado no dia 6 de Julho de 1992 pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa.






MEIAS PALAVRAS

Não é a batota destas meias palavras

o santo-e-senha que darei à sentinela

no dia em que, trôpego e com medo

de que me fechem a porta na cara,

for bater à porta da imortalidade.

 

A.M. Pires Cabral em Gaveta do Fundo

terça-feira, 27 de agosto de 2024

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?

Vimos o Evangelho Segundo S. Mateus no Cinema Monumental.

A Aida guardou os bilhetes.

Eugénio de Andrade dizia que pouco sabia de  Pasolini, mas naquele tempo eu não sabia nada sobre Pasolini.

Seriamente mutilado pela censura de Salazar, o filme mostrava um Cristo que pouco correspondia ao Cristo que a Igreja nos mostrava, que queria que víssemos.

Uma inquietude.

Outra inquietude se vai instalando a juntar ao crime de Abecassis quando mandou destruir o Cinema/Teatro Monumental.

Notícias vindas no Público, Setembro de 2023, Outubro do mesmo ano, revelavam que havia propostas para o espaço Monumental. O ministro da Cultura de então, Pedro Adão e Silva defendia que Lisboa precisava de salas de cinema com porta para rua e não encafuadas em centros comerciais rodeados de baldes com pipocas.



Não voltámos a ter notícias sobre estes projectos, entretanto o governo já é um outro.

Até quando?

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Estas «Entrevistas Corsárias» sobre a política e sobre a vida, estão datadas, mas retém a importância do papel de Pasolini em tudo o que disse, tudo o que escreveu, nos filmes que realizou.

Em Junho de 1970, perguntam-lhe:

Qual é a sua definição do amor?

- Quando falta o amor, as pessoas cessam de viver. Focam reduzidas a nada. É melancolia, o fim de tudo. A sociedade apercebeu-se disso e aqui está a razão de tanto tentar exaltar o amor. É uma chave de produtividade. Sem amor, o homem não consegue produzir. Porém, ao mesmo tempo, todos os tipos de sociedade reprimem o mundo sexual, pois a energia que o homem consome ao fazer amor não beneficia o capital. Todas as sociedades são, acima de tudo, puritanas. Não se pense que vivemos num período de plena liberdade sexual, é uma ilusão.

Outra pergunta:

Ama a vida?

- Amo-a ferozmente, desesperadamente. E acredito que esta ferocidade e este desespero me acompanharão até ao fim. Amo o Sol, a relva, a juventude. Para mim, o amor pela vida tornou-se num vício mais mortífero do que a cocaína. Eu devoro a minha existência, com um apetite insaciável. Como acabará tudo isto? Não sei.

Pasolini respondeu não saber como tudo terminaria.

Foi barbaramente assassinado, a 2 de Novembro de 1975, tinha 53 anos, em circunstâncias que ninguém procurou esclarecer.

Lembre-se o poema que Eugénio de Andrade, nessa morte, lhe dedicou:

 

REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI

 

 Eu pouco sei de ti mas este crime

torna a morte ainda mais insuportável.

Era novembro, devia fazer frio, mas tu

já nem o ar sentias, o próprio sexo

que sempre fora fonte agora apunhalado.

Um poeta, mesmo solar como tu, na terra

é pouca coisa: uma navalha, o rumor

de abril podem matá-lo – amanhece,

os primeiros autocarros já passaram,

as fábricas abrem os portões, os jornais

anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira

página, o sangue apodrece o brilhará

ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.

O assassino, esse seguirá dia após dia

a insultar o amargo coração da vida;

no tribunal insinuará que respondera apenas

a uma agressão (moral) com outra agressão,

como se alguém ignorasse, excepto claro

os meretíssimos juízes, que as putas desta espécie

confundem moral com o próprio cu.

O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores

como móbil de um crime que os fascistas,

e não só os de Salò, não se importariam de assinar.

Seja qual for a razão, e muitas há,

que o Capital a Igreja e a Polícia

de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,

Pier Paolo Pasolini está morto.

A farsa, a nojenta farsa, essa continua.

 

Eugénio de Andrade em Escrita da Terra e Outros Epitáfios

OLHAR AS CAPAS


Entrevistas Corsárias

Pier Paolo Pasolini

Tradução e Nota Introdutória: João Coles

Capa. João Bicker

Editora VS. Vasco Santos, Lisboa, Maio de 2002

Eu travo uma guerra em duas frentes, contra a pequena burguesia e contra o seu espelho, que é certamente o conformismo da esquerda. E assim, deixo-os a todos descontentes, inimizo-me com todos, sou obrigado a ter relações complicadíssimas, feitas de explicações constantes.

SONETO DE FIDELIDADE

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei-de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes em Antologia Poética

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

QUE É VIAJAR, E PARA QUE SERVE VIAJAR?, PERGUNTAVA BERNARDO SOARES

Regresso a casa.

Viajar é sempre bonito. Porque para além do mais há sempre o prazer de regressar.

Para onde caminhamos, afinal?

Sempre para casa.

domingo, 18 de agosto de 2024

AVISO À NAVEGAÇÃO

Abrimos a prosa com o pedacinho de um poema do Mário-Henrique Leiria:

«por não falar correctamente francês

já muita gente se tem enganado

acerca de viagens

Ao chegarem a Paris

vêem que   afinal    a   estação

é mesmo a de Estarreja»

Não corremos riscos – quem sabe!? – porque não vamos viajar, apenas vamos ali…

Mas isso vai dar para uma semana em que não pisamos as pedras do Cais.

Por isso entendemos dar notícia aos nossos viajantes.

Até lá!

CANÇÔES DE ENTARDECERES


 Esperar o crepúsculo nestas janelas.

Não todos os dias, mas quando possível.

E o possível é quando? Já agora, o impossível também entra?

Certamente haverá quem não compreenda que dois tipos, um no 2º andar, o outro no 4º andar olhem os pôr-de-sol.

Os entardeceres batem à porta em cada dia.

Para onde vão quando os últimos lampejos ficam, por momentos, agarrados no horizonte?

«Na cidade quem olha par o céu?», perguntou um dia o poeta Carlos Queiroz.

Tratado de filosofia à vista!...

Acabamos, mais cedo ou mais tarde, por acreditar no silêncio.

No filme «Smoke» de Wayne Wang, com argumento de Paul Auster,  Auggie, dono de uma tabacaria em Brooklyn, explica a Paul, cliente, escritor e fumador de «Schimmelpennincks», que todos os dias, tira fotografias na esquina da Rua Três com a Sétima Avenida, às oito da manhã.

«Quatro mil dias seguidos com todos os tipos de tempo. É por isso que nunca passo férias. Tenho de estar no meu posto todas as manhãs. Todas as manhãs no mesmo sítio à mesma hora. É o meu projecto. Aquilo que se poderia chamar a obra da minha vida.

São todas a mesma coisa. Tem aí manhãs brilhantes de sol e manhãs sombrias. Tem aí a luz do Verão e a luz do Outono. Tem aí os dias de trabalho e os fins-semana. Tem aí pessoas de sobretudo e galochas e as pessoas de cações e T-shirts. Às vezes são as mesmas pessoas, às vezes são outras. E às vezes as outras tornam-se as mesmas e as mesmas desaparecem. A Terra gira à volta do Sol e todos os dias a luz do Sol incide na Terra com ângulos diferentes.»

Auggie, quase, quase, no final do filme ainda a filosofar com Paul:

«Merda. Se não podemos partilhar os nossos segredos com os amigos, que raio de amigo seríamos.»

A conversa vai longa, chegado é o tempo de pôr a rodar uma canção que, por não mera coincidência, faz parte da banda sonora de »Smoke» e é cantada pelo Senhor Tom Waits: «Innocent When You Dream»

Somos inocentes, enquanto sonhamos?

Ou voltar ao principio do filme quando Dennis, um outro cliente da loja de Auggie, aparece com uma T-shirt com estas palavras estampadas:

 «Se a vida é um sonho, o que é que se passa quando acordo?»


QUOTIDIANOS


«Não vemos aqui Deus a passear pela borda da praia, “com as calças arregaçadas”, como dizia Ruy Belo. Mas acreditamos, como o grande poeta, que “o verão é a única estação” e que fomos feitos para “grandes férias”.»

Luís Filipe Castro Mendes   

sábado, 17 de agosto de 2024

OLHAR AS CAPAS

O Conde de Monte-Cristo

Alexandre Dumas

Tradução: Henrique Marques

Guimarães Editores, Lisboa s/d

- Porém, Dantés! Se fosse nomeado capitão do Faraó, conservaria Danglars sem repugnância.

- Ou como capitão, ou como imediato, hei-de sempre ter muita consideração pelas pessoas, em que os meus superiores confiaram.

VELHOS RECORTES


Largamente já foi dito por aqui que sou um devorador entusiasta leitor de crónicas.

Lidas em jornais e revistas.

Quando publicadas em livro, compro.

Esta é um velho recorte do Expresso  (3 de Junho de 2011) que reproduz a crónica que Manuel S. Fonseca ali publicava.

A essas crónicas deu título: «O Cinema dá o que a Vida Rouba».

Por motivos que ninguém explicou - pelo menos que tivesse lido... - as crónicas deixaram de ser publicadas.

Manuel S. Fonseca é proprietário da Editora Guerra & Paz e já deveria, como importante serviço público, ter reunido e publicado as crónicas que escreveu para o Expresso.

Talvez no Natal.

Digo eu!

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

OLHAR AS CAPAS


Geração Perdida

Aldous Huxley

Tradução: Moacyr Werneck de Castro

Capa: Bernardo Marques

Colecção Dois Mundos nº 10

Livros do Brasil, Lisboa s/d

«Senhor, tende piedade de nós! Tende piedade de nós!»

Gumbril encolheu os ombros e olhou em redor para as caras dos rapazes. De facto, o Senhor teria piedade de nós. Ficou surpreendido ao encontrar o mesmo sentimento, manifestado num tom um tanto diferente, na Segunda Lição, que era tirada do capítulo vigésimo terceiro de S. Lucas. «Pai, perdoai-lhes – dizia Mr. Pelvey, na sua voz invariavelmente cheia – porque eles não sabem o que fazem». – Ah! Mas suponhamos que a pessoa soubesse o que fazia. E até que soubesse muito bem demais. E, naturalmente, sabia. Ninguém é idiota.

EU QUERIA CANTAR...


Eu queria cantar para dentro de alguém,
sentar-me junto de alguém e estar aí.
Eu queria embalar-te e cantar-te mansamente
e acompanhar-te ao despertares e ao adormeceres.
Queria ser o único na casa
a saber: a noite estava fria.
E queria escutar dentro e fora
de ti, do mundo, da floresta.
Os relógios chamam-se anunciando as horas
e vê-se o fundo o tempo.
E em baixo ainda passa um estranho
e acirra um cão desconhecido.
Depois regressa o silêncio. Os meus olhos,
muito abertos, pousaram em ti;
e prendem-te docemente e libertam-te
quando algo se move na escuridão.


Rainer Maria Rilke em O Livro das Imagens

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

POSTAIS SEM SELO


Nós não somos do século d’inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século d’inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.

José de Almada-Negreiros

LEGADO

Que lembrança darei ao país que me deu 

tudo que lembro e sei, tudo quanto senti? 

Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu 

minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

 

E mereço esperar mais do que os outros, eu? 

Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti. 

Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu, 

a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

 

Não deixarei de mim nenhum canto radioso, 

uma voz matinal palpitando na bruma 

e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

 

De tudo quanto foi meu passo caprichoso 

na vida, restará, pois o resto se esfuma, 

uma pedra que havia em meio do caminho.

Carlos Drummond de Andrade de Claro Enigma em Antologia Poética

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

POSTAIS SEM SELO


Quando estamos mais ocupados é quando temos mais tempo para nos divertir.

William Hazlitt


OLHAR AS CAPAS


O Tema da Morte

Urbano Tavares Rodrigues

Colecção Cronos Ensaio nº 1

Cronos, Lisboa, Janeiro de 1966

Em Portugal a profissão de escritor reveste características sombrais, dado o pequeno número do público ledor. Ser escritor demanda portanto ou fortuna pessoal ou uma vocação ardente e esforço constante. A maioria é constituída por intelectuais que exercem outra profissão e escrevem, não raro com sacrifício de tempo e saúde, nas horas chamadas «vagas».

FOI NA LEITARIA DE BAIRRO ANTIQUADO

Foi na leitaria de bairro antiquado

que pela primeira vez

                                  me apaixone

                                                      pela realidade

Os drops brilhavam na semiobscuridade

daquela tarde de setembro

Um gato andava em cima do balcão no meio

                                               dos chupa-chupas

                           e dos rebuçados

               e das ena pá pastilhas elásticas

 

Lá fora as folhas caíam ao morrerem

 

O vento empurrava o sol para longe

 

Entrou a correr uma rapariga

Trazia o cabelo molhado da chuva

Os seus seios não conseguiam respirar na loja

                                                             apertada

Lá fora as folhas caíam

                           e gritavam

                                           Cedo de mais! Cedo

                                                         de mais

Lawrence Ferlinghetti em Como Eu Costumava Dizer 

terça-feira, 13 de agosto de 2024

POSTAIS SEM SELO


O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.

Umberto Eco

OLHAR AS CAPAS


A Cartilha do Marialva

José Cardoso Pires

Capa e ilustrações: Costa Pinheiro

Publicações Dom Quixote/Círculo de Leitores, Lisboa, Outubro de 1976

Marialva é o antilibertino português, privilegiado em nome da razão de Casa e Sangue, cuja configuração social e intelectual se define, nas suas tonalidades mais vincadas, no decorrer do século XVIII.

No convencionalismo popular (ou antes pequeno-burguês) marialva é o fidalgo (forma primitiva de «Privilegiado») boémio e estoura-vergas. Socialmente será outra coisa: um indivíduo interessado em certo tipo de economia e em certa fisionomia política assente no irracionalismo. 

QUOTIDIANOS

«Eu estive sob escuta telefónica da PIDE e recordo-me de um telefonema romântico em que eu estava embrenhado e que foi interrompido por uma forte voz masculina que, impaciente com os meus rodeios, disse qualquer coisa delicada como “põe-te mas é na gaja”. Os polícias desse tempo, pouco preocupados com o sigilo das suas escutas e irritados com a irrelevância do que ouviam, não hesitavam em ter uma intervenção ativa no que escutavam.»

Luís Filipe Castro Mendes, na crónica de hoje no Diário de Notícias

AMIGO

 

Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O’ Neill em no Reino da Dinamarca

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

OLHAR AS CAPAS


M. Teixeira Gomes

Castelo Branco Chaves

Cadernos da Seara Nova

Seara Nova, Lisboa, 1934

O amor não podia ser para este pagão senão uma realidade feliz, um deleite do espírito e um prazer para os sentidos, e, por isso, verá no amor místico uma das formas da sensualidade amorosa, em Santa Teresa de Jesus o paradigma desse amor. Para ele, como para um grego, o amor significa o que é bom e o que nas faz felizes.

Lemaitre afirmou algures que todo aquele que possue uma universal curiosidade é por esse mesmo facto um espírito temperado e senhor de si. Em Teixeira Gomes verifica-se o acerto desta afirmação e toda a sua obra é um belo espectáculo de harmonia. Esta, também, uma das marcas do seu helenismo, que não é uma saudade, nem um desejo, nem, mesmo, um ideal que laboriosamente tenha criado – mas a revelação de um temperamento que encontrou no helenismo a suprema harmonia entre o seu eu e a Natureza, entre o seu eu e a Vida.

CONVERSANDO

Francisca Camelo nasceu no Porto no ano de 1990. É poeta e tem o vício de organizar encontros em que diz poesia sua, também de outros poetas e conversa com todos.

No dia 9 de Agosto, aqui no Cais, o poema a abrir a manhã era um poema de Francisca Camelo: «sonhar: verbo intransitivo.»

Desse poema, guardei estes versos:

 «sou francamente ignorante em quase tudo
e não tenho muitas certezas».

A ideia voou então  para o Álvaro Campos para o começo do «Poema em Linha Recta:

«Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.»

LISBOA

 No bairro de Alfama os carros eléctricos amarelos chiavam nas subidas.

Ali havia duas prisões. Uma era para ladrões

que acenavam através das grades.

Gritavam, queriam ser fotografados.

 

“Mas aqui”, disse o guarda-freio com um risinho de hesitação,

“aqui estão os políticos.” Olhei para a fachada, a fachada, a fachada,

e no último andar, a uma janela, vi um homem

com um binóculo a olhar para o mar.

 

Roupa que fora lavada secava pendurada ao sol. As pedras dos muros estavam quentes.

As moscas liam cartas microscópicas**.

Seis anos mais tarde, perguntei a uma senhora de Lisboa:

“Aquilo era mesmo verdade ou fui eu que sonhei?”

Tomas Transtromer

domingo, 11 de agosto de 2024

PERDER A NOITE, PERDER UM ANO...


Estamos em Agosto, faz um calor de ananases, como diria o nosso Eça.

Li há uma semanas um bonito livro de Gabriel García Márquez, aqui já referido, um bonito título Vemo-nos em Agosto, não tem o acabamento final de Gabo, mas andam por lá os perfumes. Todos os anos a 16 de Agosto, Ana Magdalena Bach apanha o ferry que a leva até à ilha onde a mãe está enterrada.

«O denominador comum do livro é que tratará de histórias de amore de gente de idade», diz Cristóbal Perra, o editor do livro.

Durante a leitura ficaram alguns pedaços sublinhados. Este é um deles, situa-se na página 61:

«Quando recuperou o humor passava da meia-noite. Doía-lhe a cabeça, mas doía-lhe mais ter perdido a sua noite. Arranjou-se um pouco e desceu, disposta a recuperá-la. Tomou um gim com soda num tamborete do bar frente ao jardim abandonado pelos turistas madrugadores. Chegou um hermafrodita de músculos artificiais com correntes e pulseiras de ouro, cabelo dourado e a pele avermelhada com unguentes para o Sol. Tomou ao balcão uma bebida fosforescente. Ela perguntou a si mesma se seria capaz de se insinuar ao empregado do bar, que era jovem e bem proporcionado, e respondeu a si própria que não. Chegou a interrogar-se sobre se seria capaz de sair par a rua e mandar parar automóveis até encontrar alguém que lhe fizesse o favor de seu gosto, e a resposta foi a mesma: não. Perder a noite era perder um ano, mas eram três da madrugada e não havia remédio: perdera-o.»