quarta-feira, 6 de novembro de 2024

CRONICANDO POR AÍ


«Eusébio, Coluna, o pequenino Simões, o Torres gigante desciam da escada do avião para a pista do Aeroporto de Luanda e uma alucinada onda de perfume descia com eles. Ainda não disse: quem vinha à frente era o senhor Otto Glória, brasileiro, com o seu crespo bigode mestiço, a impor respeito ao miúdo que eu era, talvez 12, 13 anos. O Benfica, o SLB desses anos, cheirava bem. O Benfica perfumava uma noite tropical, resgatava até uma noite colonial. Eu estava lá.

Já cá não estarei em 2050, mas o telepático futuro, em sussurro ou estrépito, vem contar-me à noite as coisas que hão de vir. De 2050, o maléfico futuro deu-me conta de elixires entorpecentes e de um Portugal apocalíptico.

Um spleen baudelairiano afligirá os velhos. Em vez de jogarem à sueca nos jardins e baterem uma camuflada manilha, atacam-se uns aos outros, numa nevrose inexplicável que uma cerrada e negra melancolia há de cobrir.

Os jovens de 2050, conta-me o xamânico futuro, estarão abúlicos, anémicos e anómicos. O sexo é fortuito, destituído de sedução, agora interdita, um sexo imparticipativo, obrigado à repetição de um mecânico vaivém, nem bem que entras, nem bem que sais, sem efusões ou magia.

O pesadelo é a regra de 2050. Os escritores soçobraram, perdido no tempo o segredo da esplêndida prosa, entregues à lamúria de quem ignora o mistério ou o engenho da alegria, o elixir da felicidade.

Toda a música é sonâmbula, e os coros estão proibidos – nos velhos e decrépitos auditórios, os raros espectadores entreolham-se com horror. Não há cânticos na rua, ninguém sabe já o que é uma mole humana unida à volta de um rubro estandarte, narinas sôfregas, mãos trémulas de sentimento, numa só voz a soletrar a vitória e a glória.

De onde vem essa decadência? Foi essa a patética pergunta que fiz ao profeta de 2050. Vi-o ganhar a dimensão do colossal Gulliver. O espírito da nação, gritou-me ele, afundou-se como o imemorial rio que seca. E acrescentou: tudo começou, abrupta, inexoravelmente, dez anos antes, em 2040.

Descubram, então, a labiríntica verdade que nem a mais astuta sociologia antecipou. Num tribunal, sentenciou-se um processo que o Ministério Público começara no remoto, mortalíssimo ano de 2024. Um caso de corrupção desportiva, que se arrastou por penosos e novelescos 14 anos. O réu foi, por fim, em 2040, apostrofado e condenado: era, diz-me o xamã de 2050, um clube de futebol. Condenado a baixar ao Hades que era a 4.ª divisão, o clube foi extinto. Dessa certeza jurídica nasceu, como o perverso Baco da coxa de Zeus, a caducidade e morte da fé de toda uma nação.

Ao primeiro vendaval de incredulidade, sobreveio o tufão da amargura. Um torpe ateísmo sentimental derramou-se como véu negro sobre os corações: todos os corações, o do rico e do pobre, mulheres, homens, as jovens raparigas de perna lábil e lábios rouge, os cândidos rapazes movidos a cerveja e a inescrutável e labiríntica testosterona. Uma inteira nação, os políticos, a Assembleia da República, as forças armadas, o inconsolável Presidente, mesmo o impávido jurista, uma inteira nação, repetiu-me ele, transformara-se numa gigantesca barata kafkiana, e de Dante imitou os nove ciclos do inferno.

O clube, confidenciou o xamã, era o mesmo desses rapazes que eu vira descer as escadas de um avião em Luanda, esses rapazes, Eusébio, José Augusto ou Humberto, que espalhavam fragrâncias na noite de África e nas tardes da Europa.

Sonho ou pesadelo, acordei. Não voltarei a escutar o inverosímil xamã: o futuro ou é glorioso ou nunca será. SLB forever!»

Manuel S. Fonseca na sua Página Negra

Legenda: o velho estádio da Luz ainda em construção.

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