«Eusébio, Coluna, o pequenino Simões, o Torres gigante desciam da escada
do avião para a pista do Aeroporto de Luanda e uma alucinada onda de perfume
descia com eles. Ainda não disse: quem vinha à frente era o senhor Otto Glória,
brasileiro, com o seu crespo bigode mestiço, a impor respeito ao miúdo que eu
era, talvez 12, 13 anos. O Benfica, o SLB desses anos, cheirava bem. O Benfica
perfumava uma noite tropical, resgatava até uma noite colonial. Eu estava lá.
Já cá não estarei em 2050, mas o telepático futuro, em sussurro ou
estrépito, vem contar-me à noite as coisas que hão de vir. De 2050, o maléfico
futuro deu-me conta de elixires entorpecentes e de um Portugal apocalíptico.
Um spleen baudelairiano
afligirá os velhos. Em vez de jogarem à sueca nos jardins e baterem uma camuflada
manilha, atacam-se uns aos outros, numa nevrose inexplicável que uma cerrada e
negra melancolia há de cobrir.
Os jovens de 2050, conta-me o xamânico futuro, estarão abúlicos,
anémicos e anómicos. O sexo é fortuito, destituído de sedução, agora interdita,
um sexo imparticipativo, obrigado à repetição de um mecânico vaivém, nem bem
que entras, nem bem que sais, sem efusões ou magia.
O pesadelo é a regra de 2050. Os escritores soçobraram, perdido no
tempo o segredo da esplêndida prosa, entregues à lamúria de quem ignora o
mistério ou o engenho da alegria, o elixir da felicidade.
Toda a música é sonâmbula, e os coros estão proibidos – nos velhos e
decrépitos auditórios, os raros espectadores entreolham-se com horror. Não há
cânticos na rua, ninguém sabe já o que é uma mole humana unida à volta de um
rubro estandarte, narinas sôfregas, mãos trémulas de sentimento, numa só voz a
soletrar a vitória e a glória.
De onde vem essa decadência? Foi essa a patética pergunta que fiz ao
profeta de 2050. Vi-o ganhar a dimensão do colossal Gulliver. O espírito da
nação, gritou-me ele, afundou-se como o imemorial rio que seca. E acrescentou:
tudo começou, abrupta, inexoravelmente, dez anos antes, em 2040.
Descubram, então, a labiríntica verdade que nem a mais astuta sociologia
antecipou. Num tribunal, sentenciou-se um processo que o Ministério Público
começara no remoto, mortalíssimo ano de 2024. Um caso de corrupção desportiva,
que se arrastou por penosos e novelescos 14 anos. O réu foi, por fim, em 2040,
apostrofado e condenado: era, diz-me o xamã de 2050, um clube de futebol.
Condenado a baixar ao Hades que era a 4.ª divisão, o clube foi extinto. Dessa
certeza jurídica nasceu, como o perverso Baco da coxa de Zeus, a caducidade e
morte da fé de toda uma nação.
Ao primeiro vendaval de incredulidade, sobreveio o tufão da amargura.
Um torpe ateísmo sentimental derramou-se como véu negro sobre os corações:
todos os corações, o do rico e do pobre, mulheres, homens, as jovens raparigas
de perna lábil e lábios rouge,
os cândidos rapazes movidos a cerveja e a inescrutável e labiríntica
testosterona. Uma inteira nação, os políticos, a Assembleia da República, as
forças armadas, o inconsolável Presidente, mesmo o impávido jurista, uma
inteira nação, repetiu-me ele, transformara-se numa gigantesca barata kafkiana,
e de Dante imitou os nove ciclos do inferno.
O clube, confidenciou o xamã, era o mesmo desses rapazes que eu vira
descer as escadas de um avião em Luanda, esses rapazes, Eusébio, José Augusto
ou Humberto, que espalhavam fragrâncias na noite de África e nas tardes da
Europa.
Sonho ou pesadelo, acordei. Não voltarei a escutar o inverosímil xamã:
o futuro ou é glorioso ou nunca será. SLB forever!»
Manuel S. Fonseca na sua Página Negra
Legenda: o velho estádio da Luz ainda em construção.
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