terça-feira, 19 de novembro de 2024

CRONICANDO POR AÍ


Cada vez mais curto o naipe de estrelas de Do Fundo do Coração, maravilhoso filme de Francis Ford Coppola.

Teri Garr partiu a 29 de Outubro deste ano, Raul Julia a 24 de Outubro de 1994, Frederic Forrest a 23 de Junho de 20123. Resta Nastassja Kinski.

Muito ao seu estilo, Manuel S. Fonseca lembra Teri Garr:

«Começo esta crónica em regime de pura gatunagem. A frase é de Pauline Kael e o que Kael disse foi isto: “Esta é a mais cómica, neurótica e desorientada senhora do ecrã”. Estava a falar de Teri Garr, mulher que eu amei, de baba e ranho, no “One From the Heart”, do saudoso Coppola.

Mel Brooks, o realizador de “Young Frankenstein”, uma daquelas comédias que, de tanto nos fazer rir, temos a tentação de desvalorizar, quando a convidou para o filme, estava cheio de dúvidas que partilhou com Gene Wilder o actor principal: “Ela é deliciosamente linda, mas será que sabe representar?” Gene foi cortante: “Who gives a shit?”, que em bom português quer mais ou menos dizer “Estou-me bem a cagar”.

E agora quero dizer uma coisa elegante. É verdade que Teri Garr tem uma incrível beleza, mas é uma beleza que, apesar da pele brilhante, apesar do sorriso radioso, apesar do porém do seu colo suave (e já lá irei), é, dizia eu, uma beleza que ela embrulha num celofane auto-depreciativo, como se nos estivesse a dizer “caso não percebam que o melhor de mim tem um sabor de especiarias e entontece como um dry-martini, então tomem e embrulhem”. Só a prodigiosa Shirley MacLaine foi capaz de tanto desprendimento: mesmo Nossa Senhora de Fátima tem a sua beleza em mais auto-estima do que Teri a que Deus lhe deu.

E voltemos ao colo de Teri Garr. Antes de fazer a audição para o papel de Inga, a assistente de laboratório de “Young Frankenstein”, Teri olhou-se ao espelho e viu que o seu peitinho era de relativa irrelevância, atendendo ao que deveria ser o pulposo seio de que um verdadeiro cientista gosta. “Caramba, não vou perder o papel por causa das mamas”, pensou. Como é que eu sei que ela pensou isto? Sei. E ainda estou a ver Teri Garr a caminhar para os armazéns da Woolworth, onde se não estou enganado comprei um colchão (ou pelo menos uma almofada) para o minúsculo quarto-kitchenette-wc em que vivi por três meses em Los Angeles. Saí com um colchão, Teri com lenços e peúgas. Aconchegou tudo sob o sutiã, em íntimo convívio com o acetinado e túmido da sua natureza (como é que eu sei? memória minha do fugaz nu com Raul Julia no “Do Fundo do Coração”), fazendo questão em explicar-nos: “As pessoas espatifam milhares de dólares em cirurgias às mamas. Por cinco dólares no Woolsworth fiz a minha: foi dinheiro muito bem gasto”.

Teri começou bailarina nos filmes de Elvis Presley. Foi um cometa a iluminar cenas de filmes como “Os Encontros Imediatos”, de Spielberg, o “After Hours”, de Scorsese, o “The Conversation”, de Coppola, o “Tootsie”, de Sidney Pollack. Sabia dançar – adorei-lhe libidinosamente as pernas no “One From the Heart” – mas sabia sobretudo enternecer.

Nesse “Do Fundo do Coração” deixa o namorado, o Frederic Forrest, preferindo deslizar para uma aventura sexy e selvagem com Raul Julia. Um desolado Frederic vem ao aeroporto para a convencer a ficar: implora, promete e ela já vai a entrar na manga com o amante, quando, último recurso, Frederic começa a cantar o “You’re my sunshine, my only sunshine”.»

Frederic canta maravilhosamente mal, um horror de ternura, um sentimento de perda do quinto dos infernos. Teri pára, no grande plano dela vemos então um carinho deliciado pela amorosa humilhação daquele homem. Como quem diz, e não sei se diz mesmo: “Oh, que querido”. E depois continua, em direcção à aventura, ao lado amante que promete fazer-lhe as coisas, em cima ou em baixo, que ela anda com vontade de experimentar.

Teri Garr foi agora mesmo lá para cima, experimentar as coisas que já não pode ter cá em baixo.

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