terça-feira, 29 de março de 2011

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


A esquizofrenia que, ente o PS e o PSD , vai pelo pedaço, dois cães a um mísero mas, pelos vistos muito  apetecível osso, fez-me lembrar uma frase do filme “Quem Espera Por Sapatos de Defunto” do João César Monteiro:

“Este pais, senhores, é um poço onde se cai, um cu de onde se não sai.”

Pedro Tadeu, hoje no “Diário de Notícias”, interrogava-se e respondia-se:

“Os problemas dos portugueses vão resolver-se nas próximas eleições?
Não. Tudo está a ser construído para que o poder político venha a cair nas mãos de uma coligação de interesses: os dos que defendem o mesmo status quo que levou o País, desde há 25 anos, a abdicar da sua autonomia económica.
Essa coligação de interesses gastou o dinheiro da CEE em ostentação, em corrupção, em betão, em alcatrão e a financiar endividamento. Esta coligação de interesses pôs cada cidadão produtivo a dever à banca a casa onde mora, o carro com que circula, a TV e o computador onde se diverte.”

Vim pela frase do João César para sublinhar a esquizofrenia partidária, mas já que estou com a mão nos sapatos, falemos mais um pouco.

No seu livro “Morituri Te Salutant” João César revela-nos a planificação do filme:

 “Conta-se simplesmente: no Verão de 1965 eu rebentava (rebentava nada) se não fizesse um filme.
(…)
“Nesse tempo, vivíamos extremamente mal. Pensávamos fazer filmes e, regressados há pouco de Londres, com a nossa má cabeça devidamente iludida, éramos bem a imagem do Entusiasta.
Estávamos em 1965 e muitas inocências iriam, entretanto, ser violadas.
Este país, senhores, é um poço onde se cai, um cu de onde se não sai.”

No ofício que a Censura. “A Bem da Nação”, enviou para a distribuidora, dando conta da classificação do filme (Grupo D), bem como dos respectivos cortes, fica a saber-se que os censores não ouviram bem a frase e escreveram: “Este país, senhores, é um poço onde se cai e culpa donde se não sai.”

São estes os cortes:

a)      A frase “este país, senhores, é um poço onde se cai e culpa donde se nã sai.”
b)      Todas as fotografias do Chefe do Estado no jornal, tanto em grande plano como na manifestação;
c)      Fotografia como uma formação militar quando se ouve a palavra “repugnante”;
d)      Gesto obsceno com a mão;
e)      Canção dos marinheiros e todas as sequências ao almirante Saladas;
f)        A expressão “filhos da puta”;
g)      A frase “ao longe um país sem passado sem futuro;
h)      O apontamento escrito no papel.


João Bénard da Costa sobre o filme:

“Quando a Gulbenkian assinou um “modus vivendi” com o Centro Português de Cinema, em 1969, o primeiro plano que se concretizou entre 1969 e 1972, só contemplava quatro longas-metragens. César bateu à porta do mecenas a pedir uns extras para a sua média-metragem. Concretamente – lembro-me bem – pediu 180.000$10. Nessa altura, eu andava a fazer de controlador da Gulbenkian. Reparei na estranha soma e olhei para as parcelas. O tostão aparecia na rubrica “imprevistos”. Aparentemente ninguém mais reparou.”

Eduardo Guerra Carneiro (“não sou crítico, nem cronista de cinema”), num texto, “Um Olhar para os Sapatos”, publicado no “Diário de Lisboa” 14 de Novembro de 1971 considerava o filme de João César Monteiro “o mais português” que vira até então.

 “Não no sentido do Benfica. Mas no sentido literal: aqui e agora. Português na tristeza, nas pequenas rábulas, na frustração de pastelaria, no invejoso, nos outros (outras) que até se estão rindo para ti, ó César, para mim, para quem fala na primeira pessoa embora seja a voz dos outros e não a voz do dono. Desencanto?”

Jorge Silva Melo, que foi director de produção: “Um filme belíssimo. Um grande filme, há quem o diga. Um filme medíocre, também. Um filme belíssimo, parece-me”

Vitor Silva Tavares num texto no “República” de 21 de Janeiro de 1972, manda par o título um grito de César Monteiro “Filmar, sim, mas ferozmente”, cita Orson Welles: “Um filme só é bom quando a câmara representa um olho na cabeça de um poeta” e sintetiza: “Um tanto de Godard e um tanto de Rimbaud, um tanto de Bresson e um tanto de Vigo, um tanto de ternura e tanto de ironia, um tanto de pudor e um tanto de amargura, um tanto de anarquia e um tanto de medida coexistem nesta micropaisagem poética que é o filme de João César Monteiro.”

Gosto deste filme.

Os primeiros passos de um cineasta genial,  exagero meu, possivelmente, (“César tem de facto talento, embora não tenha aquele que julga ter”, Fernando Lopes). Recentes visitas ao filmes permitiram-me o espanto de vê-lo com os mesmos olhos daquele findar da década de 70. O silêncio, a espera.

Aceito que hoje, o filme, não provoque um pequeníssimo click que seja. Compreensível, mais que.

Mas estou como o João Bénard da Costa: “Não me tirem deste filme.”

Sem comentários: