sexta-feira, 4 de março de 2011

OS CLÁSSICOS DO MEU PAI


O meu pai não considerava os “singles” como discos, dizia que eram “pastilhas”
Em toda a sua vida apenas comprou um “single”: este “Meninos do Huambo” do Paulo de Carvalho.
Para não se perder entre os LPs, guardou o “single” dentro da caixa de três discos, editada pela “Orfeu” em 1983, que constituem uma selecção de canções do José Afonso. Foi aí que encontrei “Meninos do Huambo”.
Apreciava a voz de Paulo de Carvalho, mas incomodava-o a errância política do cantor.
A canção caiu-lhe fundo e, volta e meia, garrafa de “scotch” ao lado, punha o disco a rodar. Com aquela voz a fugir-lhe para o cu, como dizia a Aida, cantarolava frases do poema. Quando chegavam as percussões e os coros, tal como os directores de orquestra, desatava a oscilar a mão direita.
A felicidade lia-se-lhe no rosto.
No negrume dos dias da ditadura, nunca se adaptou ao clima de derrota que, por vezes, assolava a oposição. Viveu intensamente os dias de exaltação e esperança que o 25 de Abril trouxe. Para o fim interrogava-se, onde, como, porquê, cometemos o erro que levou a que viessem a morrer muitas das coisas em que um dia se acreditou.
Se a estes dias tivesse chegado, dolorosamente, pensaria que aqueles meninos de Huambo poderiam ser parte dos corruptos que, hoje, enxameiam o poder em Angola. Talvez, por momentos o desencanto lhe chegasse, mas voltaria a pensar que os perigos e as dificuldades seriam ultrapassados. Porque, ele sabia, que há coisas que não têm fim: a esperança num mundo melhor e a luta por consegui-lo.
Seria o tempo de voltar a ouvir a canção do Ruy Mingas e, generosamente, servir-se-ia de mais um “scotch”.

“Com fios feitos de lágrimas passadas
Os meninos de Huambo fazem alegria
Constroem sonhos com os mais velhos de mãos dadas
E no céu descobrem estrelas de magia
Com os lábios de dizer nova poesia
Soletram as estrelas como letras
E vão juntando no céu como pedrinhas
Estrelas letras para fazer novas palavras
Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade
Com os sorrisos mais lindos do planalto
Fazem continhas engraçadas de somar
Somam beijos com flores e com suor
E subtraem manhã cedo por luar
Dividem a chuva miudinha pelo milho
Multiplicam o vento pelo mar
Soltam ao céu as estrelas já escritas
Constelações que brilham sempre sem parar
Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade
Palavras sempre novas, sempre novas
Palavras deste tempo sempre novo
Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo
Assim contentes à voltinha da fogueira
Juntam palavras deste tempo sempre novo
Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo”

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