terça-feira, 1 de março de 2011

LIÇÂO DE HISTÓRIA


Muitos benfiquistas utilizam a expressão “Glorioso” e eu estou convencido que desconhecem em absoluto a sua origem.

Mas não deixará de ser interessante conhecê-la… É um mergulho na história desta nossa cidade e estou certo de que, depois desta breve explicação, passarão a utilizar a dita expressão com maior ponderação e parcimónia…

Naqueles tempos da baliza às costas (estamos a falar de inícios do século passado…) o futebol jogava-se em grandes descampados fora dos limites da cidade, um pouco à socapa…

Mas já na altura, tal como hoje, era habitual os então poucos espectadores serem acompanhados por vendedores e vendedoras de tudo e mais alguma coisa.

As mais vistosas, no seu equilíbrio instável, eram as vendedoras de água fresca,  com os seus grandes potes de barro à cabeça.

Mas havia, também, vendedoras de outros petiscos.

Maria da Glória era uma das mais conhecidas. Os bolinhos de bacalhau que  fazia, acompanhados de uma caneca de bom vinho tinto de Carcavelos, eram lendários.

Mas Maria da Glória não vendia só bolinhos de bacalhau. Vendia também outros  favores e consta que estes eram muito mais celestiais do que os próprios bolinhos de bacalhau.

A fama dos bolinhos e dos seus favores foi crescendo e, com o andar dos tempos, a multidão que desde logo começou a acompanhar por todo o lado a equipa do Benfica (que então se chamava “Media Market” – assim mesmo, è inglesa…) era muito mais norteada pelos dotes de Maria da Glória do que, propriamente, pelos feitos desportivos do clube.

Eram autênticas peregrinações essas,  e consta, até, que a própria expressão “procissão da Senhora da Glória”, que mais tarde Salazar e o Estado Novo, com a cumplicidade do Cardeal Cerejeira,  haveriam de transformar em festa religiosa, teve precisamente aí a sua origem…

Na altura  estava longe de se perguntar entre amigos “no próximo sábado vamos à bola?”  ou “no próximo sábado vamos ao Benfica?” . E, claro está, muito menos ainda “no próximo sábado vamos à catedral?”…

Perguntava-se, apenas, “vamos à Glória…?”

E de tanto terem ido à Glória, estes nobres benfiquistas começaram a ser eles próprios conhecidos por “Os Gloriosos”.

Gloriosa era a Glória e “Gloriosos” passaram a ser, desde então,os simpáticos membros do grupo excursionista que a debandavam, e não o clube, como hoje nos querem fazer crer…

Mas perguntar-se-á agora: como é que se passou de uma coisa a outra…?

Quem conhece a complexidade da gestação e transformação dos fenómenos e dos movimentos sociais sabe bem quão delicada é a tarefa de se lhes encontrar uma causa única, racional e objectiva. Como diria Lévi-Strauss (que não tem nada a ver com as calças do mesmo nome…), o facto social é esquivo e recusa-se tanto à explicação unívoca como Sócrates e Paulo Sérgio à demissão.

O que é certo é que o próprio clube, algo complexado com as origens aristocratas daquele que desde logo passou a ser o seu principal rival na capital, tudo fez para apagar da memória colectiva  as suas tão humildes origens. Maria da Glória foi, assim, apagada da História, tal como Trotsky das fotografias dos anos vinte.

O próprio lema do Clube (“E Pluribus Unum”) é uma fraude. O que na altura os gloriosos benfiquistas gritavam pelos campos fora, enquanto marchavam em direcção à Glória, era algo muito diferente. Era, nem mais nem menos, do que “Gloriun Pluribus Unum”, que significa, tão singelamente,  “Glória aguenta sempre com mais um”!

E não nos admiremos, nos dias de hoje, por estes cânticos serem feitos em latim, que na altura era uma língua viva e não  morta,  como  hoje, só ao alcance de velhas professoras liceais com noventa anos de idade. Nesses tempos era normal um simples operário chegar ao balcão de uma taberna e pedir um “copus trestums”, que não era mais, está bom de ver, do que o trivial “copo de três”.

Mas,voltando à nossa história, na sombra e no silêncio, entre  vícios privados e virtudes públicas, foi assim que se forjou a lenda. E desde os tempos do velho John Ford que sabemos que quando a lenda suplanta a realidade dos factos, publica-se a lenda. E foi isso mesmo que os zelosos dirigentes benfiquistas se encarregaram de ir fazendo através dos tempos.

E Maria da Glória, perguntar-me-ão vocês…?    Desapareceu completamente. Comeram-lhe a carne mas não lhe quiseram roer os ossos. Podiam ter-lhe feito um busto como o da Republica, com um bolinho de bacalhau em cada ponta, que hoje estaria ao lado da estátua do Eusébio, mas não… Roubaram-lhe a simbologia mobilizadora das massas, mas não quiseram saber mais dela…

Parece que, tal como sucedeu com o João Pinto, foi vista  muitos anos mais tarde, já velhota, a vender bifanas no Estádio de Alvalade. Deram-lhe um casaquito de malha já coçado para pôr pelos ombros nas tardes de maior frio, mas não consta que lhe tenham oferecido luvas…

Texto de Luís Miguel Mira

4 comentários:

Jack Kerouac disse...

Aqui está a prova do talento do Luís Mira, consegue dizer uma série de disparates, mas com estilo !

´Miguel disse...

Quando nos pomos a brincar com as "vacas sagradas", arriscamo-nos a que o nosso talento nunca seja totalmente reconhecido...

Jack Kerouac disse...

Antes pelo contrário, o talento está aqui completamente demonstrado. É o conseguir dizer estas coisas, mas com estilo, de tal modo que ontem ao fim do dia fui colocar um ramo de flores na campa rasa da Dona Glória, no cemitério de Alvalade, onde ela descansa eternamente, lado a lado com um outrora grande clube.

Aida disse...

A vida é demasiado curta para perderes o teu tempo a detestar o Benfica.
Respira fundo, isso acalma o espirito.
Na minha opinião os sais de fruto já não te fazem efeito, talvez "Proton" mas o melhor seria não esperares ser velho para vestir a cor vermelha.