sábado, 10 de dezembro de 2011

1944


Possivelmente, meu Deus, a vossa existência não passa
de uma piedosa mentira com que vos embalam os homens
(e tanto vos embalaram, meu Deus, que respirais tranquilo
nos braços destes milhares de gerações sofrendo a vossa vinda).

Acordai, Senhor; nascei, Senhor; olhai
como se amam estes numerosos povos
que se entre-destroem furiosamente sem saber por quê,
inventando razões, procurando razões, acreditando em razões,
à semelhança do enamorado que persegue uma eterna visão,
e é (julga), porque as pernas são belas, os cabelos são louros
e o seio saltava mansamente ao cruzar por ele.
Mas basta, Senhor: não demoreis a conquista.

Deixai que vos esqueçam, que descansem, que se alegrem,
sem que a morte espalhe uma violenta alegria,
e um feroz desejo de ter imensos filhos,
e uma tremenda raiva de que levem tanto tempo a crescer,
e uma simples saudade de um azul do céu,
sob o qual se morra tranquilamente de cancro ou de tuberculose
ao conspícuo abrigo dos códigos e do Governo Civil.

Jorge de Sena em Cinco Natais de Guerra, poema retirado de Natal…Natais, Antologia organizada por Vasco da Graça Moura, Público, Lisboa s/d
Legenda: Natividade, óleo de Josefa d’Óbidos.

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