domingo, 1 de fevereiro de 2015

BUSTER KEATON


Miguel Torga no XI volume do seu Diário, registava a morte de Buster Keaton:

Morreu Buster Keaton.
E com a sua morte apagou-se dentro de mim mais uma luz exemplar. O cinema foi o grande educador da minha adolescência. Por um preço acessível, com gravata ou sem ela, a horas desocupadas, o pobre poeta que eu não sabia que viria a ser entrava na sala, sentava-se, e tinha o universo possível e impossível diante dos olhos ávidos e deslumbrados. Uma arte popular e generosa vinha democraticamente ao encontro dum tímido moço inculto e angustiado e revelava-lhe magicamente terras nunca visitadas, paisagens nunca pressentidas, horizontes nunca contemplados. Punha-lhe, sobretudo, ao alcance da compreensão e sensibilidade o amor, o ódio, a desgraça, o heroísmo, a santidade, a perfídia, a abnegação, a pertinácia e a esperança encarnados em gente quotidiana, real, que actuava, penava e morria integrada no movimento inexorável da Vida. Buster Keaton foi um desses heróis liberais, pungentes e abnegados. Aparecia na tela sério e solene, lutava árdua e desastradamente contra os moinhos do destino, e partia vencido, com o triunfo adiado na fundura dos olhos. Charlot revezava-se com ele nos programas e nas aventuras. Mas o boneco de coco e bengala tinha um literato por detrás da cortina a puxar-lhe os cordelinhos. Títere nas mãos de um génio oculto e ambíguo, muito embora comovesse ou divertisse mais, convencia menos. Pamplinas, esse, era um homem de carne e osso, que actuava de rosto descoberto e assumia a inteira responsabilidade da sua fisionomia. Que se recusava a ser mito de si próprio. Um homem que nunca se demitiu da condição de mortal, a tal ponto que morreu agora dum cancro, humanamente, velho, enrugado e transitório.
Enrugado e transitório como eu próprio me vejo e sinto, a meditar a sua última lição.

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