Miguel Torga no
XI volume do seu Diário, registava a morte de Buster Keaton:
Morreu Buster Keaton.
E com a sua morte apagou-se dentro de mim mais uma luz
exemplar. O cinema foi o grande educador da minha adolescência. Por um preço
acessível, com gravata ou sem ela, a horas desocupadas, o pobre poeta que eu
não sabia que viria a ser entrava na sala, sentava-se, e tinha o universo
possível e impossível diante dos olhos ávidos e deslumbrados. Uma arte popular
e generosa vinha democraticamente ao encontro dum tímido moço inculto e
angustiado e revelava-lhe magicamente terras nunca visitadas, paisagens nunca
pressentidas, horizontes nunca contemplados. Punha-lhe, sobretudo, ao alcance
da compreensão e sensibilidade o amor, o ódio, a desgraça, o heroísmo, a
santidade, a perfídia, a abnegação, a pertinácia e a esperança encarnados em
gente quotidiana, real, que actuava, penava e morria integrada no movimento
inexorável da Vida. Buster Keaton foi um desses heróis liberais, pungentes e
abnegados. Aparecia na tela sério e solene, lutava árdua e desastradamente contra
os moinhos do destino, e partia vencido, com o triunfo adiado na fundura dos
olhos. Charlot revezava-se com ele nos programas e nas aventuras. Mas o boneco
de coco e bengala tinha um literato por detrás da cortina a puxar-lhe os
cordelinhos. Títere nas mãos de um génio oculto e ambíguo, muito embora
comovesse ou divertisse mais, convencia menos. Pamplinas, esse, era um homem de
carne e osso, que actuava de rosto descoberto e assumia a inteira
responsabilidade da sua fisionomia. Que se recusava a ser mito de si próprio.
Um homem que nunca se demitiu da condição de mortal, a tal ponto que morreu
agora dum cancro, humanamente, velho, enrugado e transitório.
Enrugado e transitório como eu próprio me vejo e
sinto, a meditar a sua última lição.
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