quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

OLHAR AS CAPAS


O Manuscrito na Garrafa

Daniel Filipe
Colecção Horas de Leitura nº 15
Guimarães Editores, Lisboa Março de 1960

O Pinheiro apressava-se. «Ele é sincero consigo e com os outros, porque acredita em tudo o que defende. Mas eu não. Já não sou suficientemente simples para acreditar em fadas, nem ainda bastante hipócrita para o fingir a contragosto. Nada tenho a fazer aqui. Para experiência basta».
À porta quatro homens olhavam-no, indecisos. Entraram, um a um, tìmidamente, como quem pede desculpa de se fazer notar. Carlos identificou-os logo – operários em traje domingueiro. Aqueles, por certo, também acreditavam. Vinham, de toda a parte, procurar a verdade, integrar a verdade nos corações submissos. Sorriu-lhe, inquirindo:
- Desejam alguma coisa?
Pinheiro ergueu a cabeça. E explicou:
- São representantes dos trabalhadores. Caramba, esqueci-me Tinham pedido para serem recebidos.
E para os homens, à vontade:
- Vocês desculpem. Mas com tanta coisa que fazer, passou-me inteiramente. Fica para a próxima. Cá nos encontraremos de novo. Tenham paciência.
«Tenham paciência». Carlos sentiu a frase como uma bofetada. «Tenham paciência. Uma vida inteira a ter paciência: paciência para os filhos, para a mulher, para os salários de fome, para os patrões espoliadores, para a doença, para a morte. Cabeça sempre curvada, concórdia, humilhação. E agora também paciência para os intelectuais de pacotilha que não se lembrara deles. Raio de vida».
Falou-lhes:
- Mas, afinal, queriam alguma coisa? Se lhes pudermos ser úteis…
O mais velho dos quatro gaguejou, rodando nas mãos o boné de xadrez:
- A gente queria era vê-los. Apenas para dizer que cá a rapaziada está pronta para o que for preciso. O que a gente quer é aprender
Carlos sentiu um nó na garganta. «Raios partam isto tudo. Tanta pureza, tanta ingenuidade malbaratada». 

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