terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

SARAMAGUEANDO


Prosseguimos a leitura das Folhas a que José Saramago chamou Políticas e que admitimos serem leitura de apoio para os dias difíceis que o governo do Partido Socialista está a viver.

Nas margens daqueles textos, está a vontade que José Saramago sentia de quanto o Partido Socialista, do tempo soarista, deveria ser e que nunca foi.

Para desgosto de quem acreditava que os ideais de Abril eram para ser cumpridos.

Os muitos milhares que se enganaram, tal como cantava o Zé Mário Branco.

Sem dúvida que foi a vontade popular, tomada em termos aritméticos, voto por voto, que fez do Partido Socialista (continuemos, para sua vergonha, a escrever a palavra por extenso) partido de governo e governo: mas não é contra o povo e, portanto, contra a vontade dele (a não ser que os portugueses sejam irremediavelmente masoquistas) que o governo do Sr. Mário Soares tem vindo a governar, praticamente desde que este celebrado socialista se sentou na principal cadeira do conselho de ministros. Já foi mil vezes escrito, já foi mil vezes denunciado que o Partido Socialista está a governar contra especificações essenciais da Constituição, e portanto contra o povo que elegeu os que a redigiram: evitemos, portanto, as repetições. Quando na semana passada falei de oportunismo e traição, não estava com certeza a pensar no PPD e no CDS, coerentíssimos partidos que sabem tão bem o que querem, que até sabem levar o Partido Socialista a fazer o que a eles convém. Cada um na sua altura e segundo o seu interesse. Nisso, o Partido Socialista tem óptima boca.
Mas onde as coisas atingem o delírio, onde as palavras, coitadas delas, são magnificamente conspurcadas, é quando se fala de dignidade da pessoa humana e de soberania. As palavras, meu caríssimo e único leitor, são infelizes, não podem defender-se de quem lhes troca o sentido, de quem não se sente obrigado a respeitá-las, precisamente porque é mínimo ou nulo o seu respeito pela pessoa humana. Falar em dignidade em Portugal, quando todos os dias se aprovam leis contra o povo, quando a polícia espanca e vem depois esconder a mão, negar que tivesse espancado, quando a subserviência se instalou nos corredores do poder, começa por ser indignidade e acaba por ser perda de sentido moral. O nosso país atravessa uma crise económica gravíssima, toda a gente o sabe. E também vive uma profunda crise moral, mas essa crise, ao contrário do que se quer fazer acreditar, não tem os seus mais elevados expoentes nem na droga, nem na criminalidade, nem na prostituição: paira mais alto e tem piores consequências.

(De um artigo publicado no semanário Extra em 29 de Julho de 1977)

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