quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

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 O avô era um tipo assaz curioso, patusco mesmo. Por chalaça, por um certo gosto anarquista, apresentava-se às pessoas como: «Mário Santos – benfiquista, republicano histórico e anticlerical».

 Ficava depois a gozar o efeito das palavras.

Tinha um béguin pelo Johnny Guitar de Nicholas Ray, aquele diálogo fabuloso em que Vienna pede a Johnny para lhe contar mentiras, que ainda a ama como ela o ama e o velho vaqueiro, a filosofar sobre Johnny: tal como ele disse, só precisa de um café e de uma boa cigarrada.

Este disco existe porque pediu ao filho que lhe arranjasse a canção tema do filme.

Naqueles tempos a oferta de bandas sonoras era quase nula, o filho não encontrou a interpretação da Peggy Lee e comprou esta versão, em espanhol, cantada pela Juanita Cuenca, uma soberba capa amarela, uma fotografia como mandavam as regras.

O avô morreu com 85 anos e nunca conseguiu entender-se com o “pick-up”. Quando lhe dava a saudade dizia: «eh pá! Põe a tocar o Johnny Guitar».

Na estante onde estão os LPs, puxados ligeiramente 5 ou 6 para fora,  está lá pendurado o boné – Donegal Tweed Woven in Ireland – que foi o último que o pai usou.

Tem dias, mas principalmente noites, que sente que o pai anda por aí, a solicitar um whisquinho e a dizer: «Eh! 
Pá põe lá o «Johnyy Guitar” para o teu e eu avô ouvirmos»

«Play the guitar, play it again, my Johnny, maybe you're cold, but you're so warm inside.»

E uma nostalgia do tamanho do mundo apodera-se da prosa.

Johnny Guitar é cantado em espanhol e está identificado como sendo um «bolero afrocubano». O disco tem ainda: Mis Manos, que é a versão espanhola de uma velha canção do Gilbert Bécaud, um fado fox, Lejana Lisboa, assinado por A. Angel e Garcia Cote, e Faustina, um baião que, no antigamente, muito no antigamente, era tocado, dezenas de vezes, na mesma noite, nos bailes lá de casa.


3 comentários:

Seve disse...

Uma pérola preciosa!

Sammy, o paquete disse...

O tempo exacto para agradecer as amáveis palavras que vai deixando por aqui ao longo dos dias.
O nosso trabalho começa por ser um divertimento, uma maneira de estar, e o intuito de divulgar o que vamos vendo, ouvindo e lendo.
Se quiser que lhe diga, há alturas em que, perante alguns textos, nos interrogamos: «o que Seve nos terá para dizer?»
Sabemos por palavras suas que odeia o mercantilismo do Natal. Mas, no meio desta calamidade epidémica, queremos desejar-lhe, se possível,um Bom Ano.

Seve disse...

Caro Amigo Sammy (curioso-às vezes nem precisamos de ver as pessoas para sentirmos afinidades com elas-), O CAIS DO OLHAR é já uma rotina (quase indispensável) do meu dia a dia!

Agradeço os seus votos de um bom ano e eu desejo-vos também um Bom Ano com alegria e muita, muita saúde.
Um abraço fraterno.