segunda-feira, 13 de junho de 2022

UM IMPLACÁVEL TRANSFORMADOR DE SI PRÓPRIO


Neste dia, no ano de 1888 nasceu Fernando Pessoa.

Descobri Fernando Pessoa muito tarde.

Motivos diversos, que pouco agora adianta referir, mas o mais directo será o terem-me vendido que era um poeta do Estado Novo, o que apressei-me a «comprar», sintomático também era o facto de não existir nenhum livro de Fernando Pessoa na Biblioteca da Casa, constituída, muito lentamente, pelo meu avô e pelo meu pai.

Foi o Mário Castrim que, um dia,  se dispôs a dizer-me que deveria começar pelo Álvaro de Campos. E tinha toda a razão porque redundou numa leitura encantatória. Aliás o biógrafo Richard Zenith considera Álvaro Campos como algo de fascinante.

Debrucei-me depois no Livro do Desassossego e o encanto continuou.

Mais tarde passei a ler livros sobre o autor e lembro-me bem de um livro da autoria de Richard Zenith, publicado pelo Círculo de Leitores que foi a base da biografia agora publicada.

Agora necessito de tempo, e talvez mais qualquer coisa, para, tirando os poemas soltos que já li, abordar, com profundidade os restantes heterónimos de Pessoa.

«Em qualquer génio, há sempre um elemento de diferença, um grau de superioridade, que não se explica, apenas se constata, mas a sua genialidade não nasce do nada.».

No dia 20 de Maio, o jornal Público, suplemento Ipsilon, publicou uma muito interessante entrevista, conduzida por Luís Miguel Queiroz, que refere a biografia que Richard Zenith publicou:

«Diz-se que Pessoa não teve vida fora da obra, mas Richard Zenith precisou de uma dúzia de anos e de 1200 páginas para escrever a sua biografia, agora lançada em português pela Quetzal, depois de a edição original em língua inglesa ter chegado à final do prémio Pulitzer. Sai-se deste livro, escrito numa prosa cativante e precisa, com a noção exacta de tudo quanto não sabíamos sobre o escritor central da literatura portuguesa do século XX.»

Alguma passagens que retirei da entrevista:

1.

Há também vários episódios que o leitor reconhece, mas que no seu livro parecem estar corrigidos. Penso, por exemplo, no célebre slogan para a Coca-Cola, que afinal seria um pouco mais comprido do que se pensava…

Quem primeiro mencionou a história da Coca-Cola foi o Luís Pedro Moitinho de Almeida, filho de um dos patrões de Pessoa, num livro publicado em 1985. Mas não se lembrava bem do slogan, e também se enganou no ano. Fui pesquisar e descobri o anúncio nos jornais da época. O texto correcto é: “No primeiro dia: Estranha-se. No quinto dia: Entranha-se.”

2.

Há um passo em que, aludindo aos contos que Joyce reuniu em Dubliners, sugere que Pessoa poderia ter escrito Os Lisboetas. Como vê a sua relação com a cidade onde viveu quase toda a sua vida?

Lisboa é central na obra de Fernando Pessoa. Identificamo-lo com Lisboa como identificamos Kafka com Praga ou Joyce com Dublin. No entanto, vejo a sua relação com a sua cidade de um modo um pouco diferente: creio que os habitantes de Lisboa são como uma família para ele. Pessoa não criou a sua própria família, mas no Livro do Desassossego, e também nos poemas, menciona muito essas figuras das camadas populares: os empregados dos restaurantes, os barbeiros, as costureiras, os moços de frete, que eram aqueles galegos que esperavam nas esquinas de Lisboa que alguém os contratasse para levar um recado ou transportar algum objecto. E há depois a sua relação com os escritórios de Lisboa e com quem lá trabalhava. Todas essas pessoas constituíam para Fernando Pessoa uma espécie de família. E são também muito importantes para ele o espaço, a topografia da cidade, que descreve com muito pormenor no Livro do Desassossego, e também o céu de Lisboa, as nuvens, o pôr-do-sol.

3. 

É correcto dizer que se situa a meio caminho entre os que acham que a heteronímia é um mero artifício e os que tendem a esquecer-se de que os heterónimos são textos, e não pessoas de carne e osso?

Há pessoanos que desdenham um pouco a heteronímia, mas a verdade é que muitos dos mais belos poemas de Pessoa não existiriam sem os heterónimos, porque os foi escrevendo em função deles. A ficção do heterónimo faz parte do poema assinado pelo heterónimo em causa. Ao escrever esta biografia, vi também claramente que as primeiras experiências de escrita, a criação de autores fictícios e o interesse por publicações, designadamente jornais, são coisas que nascem todas ao mesmo tempo e estão relacionadas.

4. 

Qual é o seu heterónimo preferido, incluindo o Pessoa ortónimo e Bernardo Soares?

O meu heterónimo favorito é normalmente aquele que estou a traduzir, ou acerca do qual estou a escrever no momento. Fico sempre seduzido pelo heterónimo de que me estou a ocupar. Mesmo Ricardo Reis, que tende a ser, talvez, o menos apreciado pelo público, deixa-me encantado quando o traduzo ou edito. E é assim com todos os outros. Mas diria que, na poesia, Álvaro de Campos é o heterónimo que acho mais fascinante. E é o que está mais perto de Fernando Pessoa. Parece ser muito diferente por fora – é exuberante, viaja imenso, tem amores, enquanto Pessoa é tímido e pouco ousado –, mas penso que representa o lado mais instintivo de Pessoa. Toda essa exuberância existia realmente dentro de Fernando Pessoa e a maneira de a exprimir chamou-se Álvaro de Campos. Na prosa, a sua obra mais genial é, para mim, o Livro do Desassossego, que se calhar até pode ser considerado poesia.

Pelo dia que vai correndo, apenas como memória, arrisco-me a fazer umas citações do Livro do Desassossego que muitas vezes visito:

«Há em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou casas de pasto em que, sobre uma loja com feitio de taberna decente se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida.»

«O que há de mais reles nos sonhos é que todos os têm.»

«Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez».

«Amo, pelas tarde demoradas de Verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se lastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos – tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele.»

«Hoje, em um dos devaneios sem propósito nem dignidade que constituem grande parte da substância espiritual da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da Rua dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, dos empregados todos, do moço, do garoto, e do gato. Senti em sonho a minha libertação, como se mares do Sul me houvessem oferecido ilhas maravilhosas por descobrir. Seria então o repouso, a arte conseguida, o cumprimento intelectual do meu ser.»

«Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores. E isto, escrito, então, parece-me a eternidade.»

«Nunca tive ninguém a quem chamasse “Mestre”. Não morreu por mim nenhum Cristo. Nenhum Buda me indicou um caminho. No alto dos meus sonhos nenhum Apolo ou Atena me apareceram, para que me iluminassem a alma».

«Devaneio entre Cascais e Lisboa. Fui pagar a Cascais uma contribuição do patrão Vasques, de uma casa que tem no Estoril. Gozei antecipadamente o prazer de ir, uma hora para lá, uma hora para cá, vendo os aspectos sempre vários do grande rio e da sua foz atlântica. Na verdade, ao ir, perdi-me em meditações abstractas, vendo sem ver as paisagens aquáticas que me alegrava ir ver, e ao voltar perdi-me na fixação desatas sensações. Não seria capaz de descrever o mais pequeno pormenor da viagem, o mais pequeno trecho de visível. Lucrei estas páginas, por olvido e contradição. Não sei se isso  é melhor ou pior do que o contrário, que também não sei o que é.»

 «Uma chávena de café; um tabaco que se fuma e cujo aroma nos atravessa, os

olhos quase cerrados num quarto em penumbra... não quero mais da vida do que

os meus sonhos e isto... Se é pouco? Não sei. Sei eu acaso o que é pouco ou

o que é muito?”

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