segunda-feira, 24 de março de 2014

OLHAR AS CAPAS


Retrato dum Amigo Enquanto Falo

Eduarda Dionísio
Capa: Cristina Reis
O Armazém das Letras, Lisboa, 1979

A pouco e pouco nas famílias da oposição começou também a crescer a impotência consciente, a força do destino adverso irresistível sobre nós, a impossibilidade de até ao fim combater a ditadura porque os anos passavam. Instalavam-se dentro da incomodidade e muitas vezes deixavam de ter a percepção da mudança e da diferença entre as coisas, as épocas, as pessoas, as datas, as palavras. Não era o medo, nem a falta de coragem, era uma incapacidade de análise, de invenção e de combate. Isto é uma coisa que marca. Não sei se te marcou profundamente, mas marca. E houve cada vez mais disputas: a quem pertencia a oposição, a que famílias e que ideias, a que escritos, a que organizações, a que siglas; e mais desconfiança para com todos os que de novo ascendiam às suas ideias ou conversas, regozijando-se ao mesmo tempo, ajudando-os com o entusiasmo e com cuidado, não permitindo excessos, fornecendo o que era seu, contabilizando, facturando por dentro não permitindo autonomias, nem emancipações, acarinhando, querendo sobretudo re-produzir-se.
Não entendendo algumas zonas de assuntos do que os mais novos diziam – a economia e as colónias; sabendo o que entre si diziam nos estaleiros, nas fábricas, nas igrejas, sendo os campos um cenário muito longínquo onde depositavam muita fé; não acreditando em movimentações subterrâneas, nem de estudantes nem de católicos – estás a perceber; fugiam ao destino devagar – as deserções, as fugas para o estrangeiro, o peso do serviço militar, a droga.

Sem comentários: