Descontados os levianos fervores dos meus verdes anos
(era o tempo em que se lia o Sadoul, nunca partilhei a admiração com que alguns
dos meus colegas envolviam a obra de Manuel de Oliveira, nem nunca soube tirar
dela qualquer ensinamento. Num país em que a prática cinematográfica nunca deu
frutos por aí além, sempre me quis parecer que as afinidades reivindicadas por
alguns novos cineastas eram, consciente ou inconscientemente, uma forma de atenuar
sobretudo a sua profunda solidão cultural, inventando a obra de um antepassado
ilustre, ainda que exemplarmente frustrado por carências disto e daquilo. E já
que andamos nesta vida só para arranjar sarilhos, também me parece que, não
raras vezes, se serviram do nome e do prestígio de Manuel de Oliveira para fins
pouco louváveis como, muito recentemente, num lamentável «documentário» sobre
Sever do Vouga que, infelizmente, envolve outros nomes que não podem estar à
mercê de empreendimentos daquele teor. Estou a pensar no Paulo Rocha, no
Fernando Lopes e no Lopes Graça, e só não insisto nesse ponto por duas razões:
porque me obriga a um longo desvio e porque me é penosos o simples facto de o
mencionar.
Da crítica sobre
O Passado e O Presente, um neocrofilme português de Manuel de Oliveira.
Por volta dos 15 anos, fixei-me com a família em
Lisboa, para poder prosseguir a minha medíocre odisseia liceal. Instalado no
colégio do Dr. Mário Soares, acabei por ser expulso ao contrair perigosíssima
doença venérea. Pensei, então, que entre a política e as fraquezas da carne
devia existir qualquer obscena incompatibilidade, e nunca mais fui visto na
companhia de políticos.
O dia mais agradável, quando se acaba um filme é,
diga-se o que se disser, o dia do pagamento.
De Relatório Cambodjiano
Prevendo o funesto desfecho, peço ao V.S.T. que mande
rezar algumas missas pela boa encomendação da minha alma. Não muitas, para que
não apreça ostentação: só quero a Missa de Notre Dame do Machaut, a Missa de
Beata Virgine do Josquin, a Missa em Si bemol do J.S.Bach e a Missa em Dó menor
K.427 (com o «et icarnatus est» cantado pela Stich-Randall) ou o Requiem K.
626, na gravação do Bruno Walter, ambas de Wolfang Amadeus.
O meu mal cheirosos espólio deve ser doado À Fundação
Gulbenkian. Para o Centro Português de Cinema, raspas. Nem um chavo. O mapa do
tesouro vai inteirinho para ios amores. Santas criaturas!
De Relatório
Cambodjiano
Não faço parte de grupos e não tenho quaisquer
afinidades culturais com colegas meus. Sinto-me, portanto, à margem daquilo a
que se chama novo cinema português, e isso nada tem a ver com o facto de haver
3 ou 4 tipos que podem até fazer filmes interessantes e com quem é agradável
tomar café e trocar impressões.
Convém, no entanto, deixar bem claro o seguinte: sou
um tipo ferozmente individualista que a si mesmo se toma pelo centro do mundo e
está profundamente convencido que estas coisas de cinema, ou do que quer que
seja, se atravessam sozinho. That’s all.
Da Auto-Entrevista
Ninguém morre por não fazer filmes e se morrer é
idiota. Não vale a pena. Morre-se, sim, por fazer filmes, por na idade em que
se fazem as opções mais importantes (que não são necessariamente as mais
graves) se ter optado pelo ofício de cineasta.
Da Auto-Entrevista
A par de isto, como sei que não chego a netos, vou
tentar reconciliar-me com a morte.
O cinema não é mais do que um itinerário que instaura
o reencontro do homem consigo mesmo. Ou Ulisses de novo em Ítaca.
Você consegue levar a sério um senhor que tem vinte e
cinco tostões no bolso?
Da Auto-Entrevista
O meu pai era um tipo melancólico. Caçava moscas e lia
Camilo. Morreu.
Lívio em Quem
Espera Por Sapatos de Defunto Morre Descalço.
Nota do editor:
Todas citações
tiradas de Os Que Vão Morrer Saúdam-te
Legenda:
pormenor da página nº 16 do 8º número do semanário & etc., onde foi
publicado o Relatório Cambodjiano.
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