No arrazoado que
acompanha os DVD da Integral João César Monteiro quase arrisquei opinião:
“Apetece dizer que os filmes do César são mais “escritos” (ou “escritas”) do
que as suas representações, ou ilustrações, audiovisuais.”
Valha isto o que
valer, não enfatizo: afinal também eu, qual César pouco augusto, “não percebo
nada de cinema” (piada dele aos especialistas?), isto apesar de ir às fitas
desde a idade de chucha na boca – o que não dá direito a borla e capelo.
Gaguejei não
muito afastado das vozes mais abalizadas de gente que faz cinema ou que,
diminuindo, trabalha a fabricá-lo, coisa que remete para questões de finança e
técnicas de fabrico. O resto são flores – nas entrevistas.
Segundo os
profissionais, “o César escreve muito bem, só é pena que seja ele a realizar os
filmes”. Pois: quando foi ele a dizer o mesmo sobre os seus charmes plumitivos,
ressabiado prometeu logo ali assassinar o escrevente. Hossana!, não conseguiu.
Por mim acontece ou aconteceu que até o
escrevinhei (na orelha do volume que reúne os argumentos de LE BASSIN DE J. W.
e de AS BODAS DE DEUS): Melhor do que ele, ninguém escreve em português de – e
para – cinema. São os seus scripts (ou filmes da galáxia Guttenberg) de lamber
a língua canónica: volúpia e escarnho, ascese e escatologia numa ondulação de
tal modo ritmada que é já quase erótico, cópula astral. E mais, de passo:
Depois, quando iluminados por projecção mágica, viram ópera: teatro e música
enquanto, e só, artes sacras – comédias, bufonarias sejam, libertinagens,
profanações.
Logo aqui se vê
que não estamos perante linguagem crítica, seja esta o que for. Não ousa o
exegeta quejandas subjectividades impressivas, antes parte em romaria aos
“Cahiers”, ou aos “Inrockuptibles”, petiscar ideia e jargão formatado. Ai de
mim, que “também eu escrevi cartas de amor, como as outras, ridículas”. Já é
azar.
Admirarei menos
os filmes do César? – Nem vale, para o caso. Desconfio sempre de dicotomias com
água (forte) no bico. E já o disse, assinado, que um só plano do bijagós
(exemplo: “uma laranja sobre a mesa”), pela sua carga, pela sua densidade, pesa
mais em mim que quanta estrelada filmografia: é que os instantes de graça
(“instantes de Camões”, pressentia-os o Manuel Maria Barbosa du Bocage) só
faíscam, só fulguram, em receptores sintonizados. A questão das agulhas
magnéticas não é aqui despicienda.
Tem mais que
idade para ter juízo, posto o não tenha, a minha queda pela escrita do César. E
julgo saber, ou tão-só intuir (não vai dar ao mesmo?) de onde ela venha (aparte
o pendor congénito), com seus recortes vicentinos, sem requebros barrocos, sem
colagens “esquisitas”. Leituras dele, pois mais que muitas – e aí está a
biblioteca, feita e refeita ao sabor de tempestades, a atestá-lo. Para não
gastar papel, que está caro, aponte-se ao acaso os românticos franceses e
alemães, os surrealistas e demais grandes transparentes, todo o Sade, meu caro
Watson, todo o Nietzsche (esse que inundou de luz negra o script original de
VAI E VEM), mais os modernistas portuguesas e seus egrégios avós, Nobre,
Pessanha, Cesário, mais Dante, Molière, Shakespeare, Dostoievski, chega? Tivera
ele mais uns meses de vida e arriscaria ter de sair de casa expulso pela
cubicagem de livros e cêdês – mas esta é outra música.
Lá por onde
rompemos solas e puímos fundilhos, canoras vozes a ambos excitaram as ávidas
orelhinhas (sentenciou Mestre Aquilino que para se ser escritor “é prechijo
orelha”). No palco sonoroso – pleno olho da rua ou suspeitos cafés tristes –
era um rol de tenores: do grave, e probo, Carlos de Oliveira, sotto-voce
alquimicado em cristal na Micropaisagem e em Finisterra, ao “corpo escrevente”
Luiza Neto Jorge, passando – pare, escute e olhe – pelo Cesariny de Pena
Capital e Nobilíssima Visão (ele que já louvara, simplificando, o Álvaro de
Campos e dera o pontapé definitivo no “realismo socialista” com seus trolhas e
suas couves, pelo picaresco Cardoso Pires, pelo atómico Herberto das viscerais
magias, e pelas verrinas, pelos vitríolos, pelo negro humor sacana de um
batalhão de pelintras alcoólicos (ou românticos inveterados, como queiram) tais
o Virgílio Martinho, o Forte da faca nos dentes, o Sebag planeta precário, o
Pacheco da crítica de circunstância, o Ernesto Sampaio da luz central, o Pedro
Oom sonhador espacializado, o Manuel de Castro crocodilo, gente que oriunda ou
nem por isso de idealismos igualitários e até, alguns, de militâncias ao jeito
moscovita (tentação ditada pelo sufoco da ditadura que não por rigores
ideológicos, sempre de pôr entre aspas em tão incorrigíveis egocêntricos), será
o berro libertador, ou libertário, e se pusera cá fora, entre rancores que
remédio literários, a “rir de tudo”.
César à coca. E
a buscar contrapeso e medida na ática Sophia como nos labirintos caligráficos
da Velho da Costa, com quem forjou cumplicidades digamos “dialéticas”.
Salgaram todos a
língua já de si agilíssima daquele que em suas primícias de bardo (Corpo
Submerso, ed, Do Autor, 1959), a par de um tocante, por ingénuo, lirismo
amoroso e existencial à la Daniel Filipe ou Zé Gomes Ferreira do Eléctrico (mas
lá está ela, a pulsão lírica, a assomar nos filmes, contrapontando bojardas),
afirmara ter, como brincadeira preferida, “atirar merda à cara das pessoas” e ,
como religião, o Urinismo – O ritual de carácter absolutamente erético
consistia em Mijar em igrejas e conventos: auspiciosas liberdades poéticas a
configurar o “Surreal-abjeccionismo” proposto por Pedro Oom como saída, “para
sobreviver livre”, a um surrealismo por cá agrilhoado (na ignomínia
salazarenta, “que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós
seres abjectos?”) e que lhe hão-de enfarpelar uma imagem de marca não mais
descartável.
[Setembro de
2003 (ver “Diário de Notícias”), meses depois da sua morte, ainda um tal Mexia,
Pedro, o associava a Luiz Pacheco, ao Manuel João Vieira dos “Ena Pá 2000”, ao
humorista José Vilhena e cá ao rapaz como fazendo parte de “uma sub-cultura
lisboeta mais ou menos escabrosa” própria, logo concomitante, de “uma família
devassa”. Em sacristia, muito educativo.]
Os tempos então
vividos (décadas de 60-70, com a erupção académica de 61, a guerra colonial e,
sobretudo, com o Maio de 68 a disparar formidáveis anarqueiradas e ardentes
esquentações românticas sem virgens ao luar) jogaram de feição com o
alto-contraste de um César em condição ontológica de vadio e pedinte, não raro
roído de fomeca, mas senhor – alto lá! – de “todos os sonhos do mundo”,
incluindo o de cinema, contrariado que fora em pequenino ao ver recusada pela
progenitora a sua “visão cinematográfica de OS TAMBORES DE FU-MANCHU”: cineasta
à vista?
Ora sonhar é
fácil – posto que nem sempre sustente a vida, isto é, o estômago. Escrever
poemas ou cartas de amor loucas loucas, encher granéis a exprimir amores e
desamores sobre matéria de arte, a 7ª (o sublinhado anula o seu uso mercantil),
sempre sai mais barato (basta papel, bic, bica e beata no beiço), pode render
um que outro maravedi (perguntem ao Bénard de “O Tempo e o Modo”) e, hélas!,
desde logo orientar azimutes para a poética (visceral, vivencial) da criação
cinematográfica que havia de vir, desse lá por onde desse e custasse, a quem
estas coisas custam, o que custasse. Saltando da literatura, pois que dela
partindo, o verbo queria-se iluminado, refulgente, um dia animado na alvura da
pantalha como violação, exorcismo, e sublimação. A cabeça fervia-lhe
(autopsicografava-se já então o “esquizoide”), sendo que o sopro da combustão
advinha, não por menos, do compulsivo ódio à burguesia (por uma vez, sem aspas)
como do mais intenso, do mais radical fundamentalismo poético – Poesia e Revolução
num corpo único e à prova de ara sacrificial. “Je est un autre”. O outro,
obviamente, precatava-se: tem a bondade de me auxiliar?
Salivas
trocadas, raivas, zangas, risos, no ir descendo nocturnamente a Fontes Pereira
de Melo, e porque o abaixo assinado então em funções editoriais no “Literário”
do “Diário de Lisboa”, vá de pôr o génio ao trabalho – e de facto ao tostão,
fiéis seguidores ambos do preceito cesarínico “ganhar sim, mas pouco”, que era
e é, nos sem jeito para o negócio, o que se paga pelo suplemento de oxigénio a
que se pode chamar “liberdade”, dessa que abomina, e portanto dispensa,
genuflexões de colete e respeitinho.
Vem daí o “pas
de deux”, nunca mais abandonado. E quando irrompe (em 73) a revista & etc
(aquela que se quis cultural q.b. porque ele há mais vidas e outros modos de se
estar nas ditas) foi um fartar vilanagem: prosa de Joãozinho arrancada a ferros
dos castos lápis censórios, e logo pois sob cobertura “das mais amplas
liberdades” consentidas e fomentadas pela folheca – vá de ameaças de murro e
pontapé ou, em alternativa, de processos judiciários. De pronto, a interrogação
do energúmeno ao editor responsável: “Dá prisa?”. E logo a resposta do amigo da
onça: “Que tabaco fumas?”
Porque ninguém,
muito menos eu (se de um lado chove, do outro troveja), lhe travava a gana, lhe
amaciava a pena, lhe comovia o músculo cardíaco, sequer por mor de amizades
corporativas ou conveniências alimentícias. Vista a esta distância, e mesmo
somando as “liberdades democráticas” prodigalizadas pelos poderes dominantes
ajaezados de abrilistas, é ainda de espanto graúdo o destempero, o furor
interventivo, a causticidade, a própria e sempre tão cuidada acutilância
estilística do nosso homem em Lisboa – voz subterrânea alcandorada à polémica
do tempo a partir de um subterrâneo da Rua da Emenda.
Cá entre nós,
era um festim. E já o cinema por um binóculo, a vozearia (ainda que de papel,
ou no papel) a percutir nos tímpanos dos decisores. Aqui, uma mútua
conspiração, muda, inominável. E uma relação ao abrigo de transacções: nunca
por nunca, quer na revista quer nos livros publicados, recebeu César um chavo
da chafarica, nunca por nunca arrecadou esta (cá, “só amor gratuito”, como o
Régio) um chavo pelo trabalho do César.
[Citando João de
Deus, o outro, o de Campo de Flores mas também de Criptinas, “vou-vos contar
uma história / em prova desta asserção”: estava pronto em chumbo na tipografia
o livro Morituri quando a & etc dá o badagaio – nem um tuste para gastos.
Que fazer, Vladimir Ilitch? Posto o autor ao corrente, das duas uma: ou chumbo
para a caldeira, execução sumária, ou, bóia de salvação, propor a obra, sem
despesas, ao editor Nelson de Matos, então na Arcádia.
César opta pela
hipótese salvadora, corro ao Nelson, aceita este pagar à tipografia a impressão
em troca de ficar a Arcádia com os exemplares da tiragem. Vivas e olés!
Publicado o livro (todo & etc, capinha de João Vieira, extra-texto do João
Rodrigues, sobrecapa kraft, anilina preta a dar patine às margens das folhas),
recebe o autor por copygaitas 20 ou 25 exemplares e eu uns 5 ou 6 pelo
trabalho.
Que de euforia!
O livro estava cá fora, são e salvo.
… E mais ficou
quando, por sua vez falida a Arcádia na enxurrada do 25 de Abril, foi parar a
padiolas de venda na rua, contribuindo assim para almoços & jantares de uns
tantos trabalhadores desempregados. Anos volvidos, ainda eu comprava, para o
desvalido autor, qualquer exemplar que se encontrasse aí perdido.
Desse avantajado
sucesso popular retenho um livro na estante. Creio que à altura da morte, o
César nem um para amostra.]
Virá a talhe de
foice (já que não pode vir a sabre ou a canhão: as letras têm destas
limitações) relembrar a miserável campanha difamatória que almejou conspurcar o
autor da BRANCA DE NEVE: os pipolares altifalantes da piolheira denominada de
pagadora de impostos, no nítido nulo do pensamento crítico, vá de estrondearem
o César como salteador de carteiras, burlão que saca o seu do bolso da maralha
contribuinte para, costas ao alto quanto a trabalhinho que se visse, ter a lata
de pôr em circulação um filme “todo negro”. O “puta que os pariu”, como o “quer
que o público se foda” – léxico de Monteiro quando fera acossada –, ao invés de
sublinhar a dramática condição do artista face à mais boçal ignorância mesclada
de malvadez, cavou de vez o fosso entre uma súcia devoradora de lixos e um
homem que sempre recusou submeter o seu trabalho à lógica mentecapta, e aos
imperativos, do capital. De muito poucos se pode dizer o mesmo.
Por cá andou,
devassado de sonhos de grandeza. Nesta feita cabisbaixa “revisited”, alguns
palpitam, ou fosforescem, em forma de filmes. Outros ressaltam nos textos que
escapou, espelhando. De costas viradas a uma contemporaneidade lorpa, promotora
descarada de equívocos e embustes celofanizados pelo marketing, negou o
oportunismo jornaleiro, dito “sociológico”, e avançou com seus próprios pés por
um território dificultoso, em parte por desbravar, mas que livra o cinema do
espartilho de “espectáculo” – no que este tem de pronto-a-comer & amanhã há
mais – para o inscrever de pleno direito no plano superior do espírito, que é
aquele a que o artista se obriga.
Este “Lord das
Escócias d’outras eras” nosso contemporâneo, forçado a Nosferatu pela
pestilência do tempo e do lugar, tornou público um ser endemoinhado,
sarcástico, inconveniente até à insuportabilidade. Não poucos foram “vítimas”
das suas fúrias incontroladas, das suas telhudas exigências, da violência das
suas objurgatórias. Assim fardado (ocultando pois o Pierrot lunar), não é de
admirar que o João César Monteiro fosse temido e, pior, odiado. Ele, que em
tempos se diagnosticava “não sou uma natureza agressiva, antes pelo contrário”
(in “A Minha Certidão”), apesar de ter pretendido estilhaçar uma garrafa de
tinto na moleirinha do Cunha Telles por este o ter chamado oportunista,
ressentia-se fundo – e devolvia a parada, com juros. A quem o julgou derrotado,
ou afim domesticado, após o som e a fúria da borrasca BRANCA DE NEVE, respondeu
com o script mais soberbo, mais feroz, de toda a lusa cinematografia – VAI E
VEM – e, como num imenso adeus quiçá premonitório, com o seu filme mais
hierático, mais conciso e contido, mais cristalino do seu cânone de rigor
obstinado.
Com
distanciamento irónico ou sem ele, confessou-se aos 20 anos “sempre heróico” e
“de peito exposto às feras. Certo é que, algo zurzido por acidentes e
disparates da vidinha, nunca lançou a toalha ao tapete nem se acomodou ao
repouso do guerreiro. Não é que o percurso biográfico de razão ao promitente
herói da Figueira da Foz?
Não sei se “o
cinema” perdeu alguma coisa com a sua morte. Eu perdi – mas quem sou eu senão o
que gostaria de afirmar que a Cidade também, aquela Cidade onde “tout homme
rêve d’être dieu” (citação de André Malraux no pórtico de Corpo Submerso)?
Sabemos que a
alturas tantas da sua vida, num desdobramento heteronímico, o César Monteiro
passou a denominar-se João de Deus.
Em tal Diabo,
foi e é para levar a sério, diz-me aqui a caneta.
Vítor Silva
Tavares em João César Monteiro, Cinemateca Portuguesa.
Legenda:Anúncio, publicado no Diário de Notícias de 12 de Dezembro de 2003 e capas dos livros de João César Monteiro publicados pela & etc.
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