quinta-feira, 7 de junho de 2018

VOU TER DE AGUENTAR


Carta, datada de 22 de Março de 1974, de Mário-Henrique Leiria para a «Querida menina»:

Recebi ontem o teu pacote medicinal. Agradeço como se seve. Chegou mesmo na hora, tu estás sempre atenta às coisas. É espantoso! Um beijão, se quiseres aceitar. Pode ser?
Por aqui, houve o que sabes e até muito mais. No fundo, mais uma palhaçada , que na farda não se pode acreditar nem no boné. Contarei, se valer a pena, quando cá vieres. Aqui não. Os meus papéis estão vigiados, tal como o telefone, mas isso não tem importância nenhuma, até porque eles sabem que eu sei que eles sabem…
Cá por casa há problema, mas não fiques preocupada, por favor. É assim:
Tivemos a notícia, no domingo, que o prédio foi vendido e vai ser demolido para dar lugar a mais uma pequena colmeia de obcecados… Muito bem. O diabo é que eu tenho duas velhas, 17 divisões, um cão, 7000 livros, toneladas de mobília idiota, sei lá…! E além disso, pago só 550$00!!! Oh pasmo! Mas é verdade. Nem de outra maneira podia ser, pois a média geral aqui de casa de casa não chega a 3000$00 por mês.
Aí está. A gaita é que vou para a rua e, neste magnífico país ultra-iflacionário, um cochicho onde não cabe nada com o máximo de quatro assoalhadas (como se chama aqui) vai logo para entre 4000$00 e 5000$00 e já não é mau…
Um bode dos grandes…
Vou ter de aguentar. Não sei como, mas vou. E o diabo é que isto está a deitar as velhas abaixo… e eu sempre a fingir que tudo há-de ir pelo melhor.
Sabes, querida, o cansaço tem o seu limite. Tem mesmo.

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos

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