terça-feira, 27 de novembro de 2018

HIGHWAY OF THE BLUES


“Lord the 61 Highway
It’s the longest road I know
She run  from New York City
Run right by my baby’s door”
(Mississippi Fred McDowell)

A Highway 61 é também conhecida por “Highway of the Blues” por duas razões: porque atravessa a região do chamado Delta do Mississippi, que foi onde se afirma que um Blues rural mais genuíno nasceu e se desenvolveu em toda a sua plenitude; e  porque foi por essa estrada acima, muitas vezes a pé e à boleia e tocando nos diversos Juke Joints que lhes surgissem no caminho,  que partiram os velhos bluesmen à procura de melhores condições de vida do que aquela que tinham, no Sul em geral, e nas plantações onde muitos trabalhavam, em particular.

Alguns não quiseram ou não puderam partir. Deixaram-se ficar no trabalho duro das suas plantações, arando a terra atrás de mulas, colhendo o algodão ou, com alguma sorte e com a progressiva mecanização da agricultura, guiando tratores durante décadas e cantando e tocando nas vizinhanças, nos tempos livres, para arrecadar alguns tostões suplementares. Até serem descobertos ou redescobertos muitos anos mais tarde e levados em ombros para Nova York, como sucedeu com Mississippi John Hurt, do qual um dia vos falarei.

O destino desta peregrinação variou ao longo dos anos,  em função do arrojo, da ambição  e da ligação à terra natal que cada um desses músicos manifestava:  uns mantiveram-se no Delta e ficaram por  Clarksdale ou nas suas  proximidades, fazendo dessa terra o mais importante lugar do Blues no Mississippi nos anos 20 e nos anos 30; outros subiram até Memphis e instalaram-se em Beale Street; outros ainda, mais arrojados, seguiram mais para Norte até St. Louis, que foi também uma importante cidade do Blues; outros, finalmente e mais tarde, subiram ainda mais longe até Chicago, que nos anos 40 e 50  foi a capital do blues nos Estados Unidos. Os blues desenvolveram-se aí de tal maneira que deram origem a um “sub-género”, os chamados “Chicago Blues”, mais eletrificados, com nomes como Muddy Waters, Howlin’ Wolf  e Sonny Boy Williamson, todos eles oriundos do Mississippi.


Mas não se pense que a vida dessa gente era fácil nas cidades onde se instalavam. Tinham de trabalhar no duro nas fábricas, como todos os outros, até surgir uma oportunidade de serem valorizados através da sua música. Muddy Waters, por exemplo, um dos maiores intérpretes do Blues moderno, partiu da sua plantação de Stovall  para Chicago em 1943, andou durante anos a guiar camiões durante o dia e a tocar à noite onde calhava, e só no final dessa década começou a ter algum sucesso, após ter assinado pela Chess Records. Mas por cada um que obtinha sucesso, muitos outros se mantiveram na obscuridade.

Em 1927 uma verdadeira tragédia económica e social abateu-se sobre o Mississippi, fazendo com que a “Highway 61” não fosse apenas o caminho dos bluesmen, mas de uma boa parte da população do Delta, expulsa à força das suas terras. Após semanas de chuva intensa, vários diques de água cederam em Abril desse ano e o rio Mississippi transbordou, provocando uma cheia gigantesca que ainda hoje é considerada a maior tragédia do género em toda a história dos Estados Unidos. Apenas no Verão desse ano a situação começou a normalizar. Cidades ficaram inundadas, plantações foram devastadas e estima-se que metade da população negra do Delta do Mississippi foi obrigada a emigrar para o Norte, à procura de condições de subsistência na grande indústria de Detroit e nos grandes matadouros de Chicago.

Tanto o Blues como a Folk têm uma grande capacidade para captar e integrar nas suas “letras” os acontecimentos e as histórias do dia-a-dia, pelo que não é estranhar que, pouco tempo depois, muitas tenham sido as músicas que se debruçaram sobre este desastre ecológico. A mais conhecida das quais é capaz de ser “High Water Everywhere”, que Charley  Patton compôs no ano seguinte. Mais de 70 anos depois, Bob Dylan  - Mr. Zimmerman again! – rendeu-lhe uma bela homenagem, com “High Water (for Charley Patton), que faz parte do seu álbum “Love and Theft”, de 2001.

A tragédia da cheia não atingiu apenas o Estado do Mississippi, mas também muitos outros estados limítrofes. A fuga das populações foi massiva e estima-se que, só no Estado do Mississippi, um quarto de toda a população negra tenha emigrado para o Norte. E com ela muitos bluesmen. Quase sempre pela “Highway 61”…

No “Delta Blues Museum” de Clarksdale encontrei uma frase de um tal Mike Rewe, estudioso do “Chicago Blues”, que achei curiosa e que resume toda a história:

“While segregation created the blues, migration spread the message”


Quer isto dizer que se esta tragédia afetou em muito a situação do Mississippi e dos músicos do Delta, não afetou tanto os blues a nível nacional. Tanto mais que a indústria discográfica estava em verdadeira fase de expansão e que toda essa população negra deslocada para o Norte, impossibilitada de escutar “ao vivo” a música que no seu dia-a-dia sempre se tinham habituado a ouvir, vai tornar-se a população-alvo dos chamados “Race Records”.

As gravações de Blues não começaram nessa altura, mas muitos anos antes. Embora se trate de um instrumental que pouco tem a ver com o género vocal de que estou a falar, consta que a primeira gravação de uma música a conter blues no seu título foi “Memphis Blues”, que W.C. Hardy gravou para a Victor em 1914 (Mr. Zimmerman, que nestas coisas não perde pitada, far-lhe-á também uma referência no seu “Suck Inside the Mobile with the Memphis Blues Again…). Essas gravações tiveram uma difusão relativamente restrita, tanto mais que as condições de reprodução não estavam ao alcance de todas as bolsas.

Mas a tecnologia evoluiu, as condições e a qualidade de gravação e reprodução melhoraram significativamente com a chegada dos aparelhos Victrola  e dos novos 78 rpm mais leves e duráveis, tornando a música gravada mais acessível.
Neste novo contexto, muitas foram as companhias discográficas (Paramount, Victor, Okeh, …) que decidiram gravar a “música dos negros”, para uma minoria branca que já se mostrava interessada, mas sobretudo para uma imensa maioria negra. São esses discos interpretados por negros, muitas vezes gravados por negros e maioritariamente destinados à população negra que vieram a ser designados por “Race Records”. Esse “boom” discográfico sofreu um forte abalo com o “crash” de 1929, mas algumas editoras sobreviveram e a situação voltou a melhorar durante a década de 30, quando o New Deal de Roosevelt deu uma oportunidade de melhores condições de vida a uma boa parte da população americana.  


Um outro acontecimento que muito ajudou à difusão do Blues nesses tempos, e ao sucesso comercial dos discos, foi o início das emissões radiofónicas. Algumas dessas Rádios, na década de 40, eram geridas por negros e destinadas, maioritariamente, à população negra. Foi o caso da WROX, de Clarksdale, e da WDIA de Memphis, onde se iniciou B.B. King.       
Vou terminar regressando à Highway 61, para vos dizer que é curioso que uma estrada tão importante para a história do  blues tenha tido, na época, tão poucas canções a imortaliza-la…  Só a partir da década de 50 começam a surgir algumas músicas que lhe são inteiramente dedicadas. Nenhuma delas fará parte da Grande História, mas talvez as de Mississippi Fred McDowell e de James “Son” Thomas (“61 Highway Blue”) sejam as mais interessantes. Embora o primeiro devesse estar perdido de bêbado quando imaginou a estrada a passar em New York City, coisa que nunca aconteceu…!

Fontes:
Não sendo eu um historiador do “Blues”, todo o conhecimento que tenho é em segunda mão. Assim sendo, para a preparação desta minha viagem foi importante a leitura ou releitura das seguintes obras: “Alan Lomax – The Land Where the Blues Began, 1993”; “Roger Stolle – Hidden Story of Mississippi Blues, 2011”; “Robert Santelli e Outros – American Roots Music, 2001”; “Howard Mandell – The Illustrated Encyclopedia of Jazz and Blues, 2005”, de que existe tradução portuguesa nas Edições Afrontamento.
Importante foi também, como não podia deixar de ser, a revisão dos 7 episódios de Martin “Scorsese Presents the Blues”.
A tudo isto acresceu o que aprendi e registei em todos os museus que visitei e nos lugares históricos por onde passei.

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

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