terça-feira, 6 de novembro de 2018

SARAMAGUEANDO



«Posso fazer-lhe também uma pergunta. Ora essa, senhor presidente, à vontade. Votou em branco, Anda a fazer um inquérito, Não, é só uma curiosidade, mas se não quiser não responda. O homem hesitou um segundo, depois, sério, espondeu, Sim, senhor votei em branco, que eu saiba não é proibido. Proibido não é, mas veja o resultado. O homem parecia ter-se esquecido do amigo imaginário, Senhor presidente, eu, pessoalmente, não tenho nada contra si, sou até capz de reconhecer que tem feito bom trabalho na câmara municipal, mas a culpa disso a que está a chamar resultado não é minha, votei como me apeteceu, dentro da lei, agora vocês que se amanhem, se acham que a batata escalda, soprem-lhe.»

José Saramago em Ensaio Sobre a Lucidez.

A apresentação de “Ensaio Sobre a Lucidez”. em Março de 2004, no Centro de Congressos de Lisboa decorreu, perante milhares de pessoas, com um debate moderado por José Manuel Mendes, e que contou com a presença de José Saramago, José Barata Moura, Mário Soares e Marcelo Rebelo de Sousa.

Algures, numa não nomeada cidade, há eleições autárquicas. É grande a afluência às urnas mas, após a contagem dos votos, verifica-se que a esmagadora maioria dos votos estão em branco. Nem governo, nem políticos, nem comentadores políticos, nem jornalistas compreendem a situação e interrogam-se: como pode um povo ser tão irresponsável?

José Saramago nunca perdeu uma oportunidade de se constituir num gerador de polémicas, de modo algum fúteis e nunca estéreis, e com este livro, de um mero exercício com o seu quê de curioso, quiçá ineditismo, os habituais detractores de Saramago levaram o caso para a provocação.

Título do Público de 31 de Março de 2004:

«Saramago recusa democracia e a apela ao voto em branco.»

Ao tempo, Augusto Santos Silva, hoje ministro dos Negócios Estrangeiros, dos escrevia, também no Público, que o nobel menorizava a literatura.

«O voto em branco é uma arma democrática que possuímos para impedir os políticos de continuarem a brincar connosco.», disse Saramago.

«Digamos que pôs a estopa e eu contribuí com o prego, e que a estopa e o prego juntos me autorizam a afirmar que o voto em branco é uma manifestação de cegueira tão destrutiva como a outra. Ou de lucidez, disse o ministro da justiça, Quê, perguntou o ministro do interior, que julgou ser ouvido mal, Disse que o voto em branco poderia ser apreciado como uma manifestação de lucidez por parte de quem o usou, Como se atreve, em pleno conselho do governo, a pronunciar semelhante barbaridade antidemocrática, deveria ter vergonha, nem parece um ministro da justiça, explodiu o da defesa. Pergunto-me se alguma vez terei sido ministro da justiça ou de justiça, como neste momento, Com um pouco mais ainda me vai fazer acreditar que votou em branco, observou o ministro do interior ironicamente, Não, não votei em branco, mas pensá-lo-ei na próxima ocasião.»


Legenda: capa de Ensaio Sobre a Lucidez publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de Dulce Maria Cardoso.

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