quarta-feira, 7 de novembro de 2018

SARAMAGUEANDO


«Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto. despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto. debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.»


Maria Alzira Seixo tem, sobre o livro, uma interessante abordagem: «é um romance divertido, pois que nos pode dar maior satisfação do que rir à custa da morte, a única coisa no mundo que não faz rir ninguém, a não ser em esgar ou exorcismo?»

José Saramago também não anda longe:

«Foi um livro escrito com alegrai. Falar da morte e dizer que o fiz com alegria,,, É uma alegria que vem não só pelo tom irónico, sarcástico às vezes, divertido, mas também porque é como se me sentisse superior à morte dizendo-lhe: «Estou a brincar contigo.»

E em outro passo refere:

O livro empurra uma porta aberta. Diz aquilo que todos já sabemos: que temos de morrer. Mas talvez mostre, com mais clareza, que temos que morrer para viver. Se não, a vida seria insuportável.

A um químico do futuro, exigiu Maiakowski:

«A primeira coisa que farás é ressuscitar-me, a mim que tanto amava a vida.»

Luis Filipe Cristóvão:

«No fundo, acabamos sempre por chorar a nossa dor, nunca a dos outros, mesmo que a nossa dor seja causada pela dor dos outros, é a nossa dor, é a nossa dor que choramos.»


Legenda: capa de As Intermitências da Morte publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de Valter Hugo Mãe. 

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