sábado, 21 de novembro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS

Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

 

NOS MARES DO FIM DO MUNDO

 

Guardo da infância-quase-adolescência a imagem do estuário do Tejo, frente  à Praça do Império, pejado de lugres bacalhoeiros, embandeirados em arco, aguardando a partida para a Terra Nova e Gronelândia.

Porque foi de Belém que partiram as armadas em demanda de novas terras e o regime pretendia que a faina bacalhoeira fosse a epopeia desses dias.

Acontecia por princípios de Abril e coincidia quase sempre com o tempo de Páscoa.

As muralhas pejavam-se de gente, na sua maioria famílias dos pescadores.

Os pescadores nos seus dóris vinham dos barcos até à margem para assistirem, aos actos religiosos que se realizavam no Mosteiro dos Jerónimos.

Após a cerimónia, dois pescadores deslocavam-se a casa do Senhor Presidente do Conselho, em nome de todos os outros trabalhadores do mar, apresentar cumprimentos de despedida.

Os jornais testemunhavam, então, que Salazar recebia-os com muita simpatia, demorava-se alguns minutos a conversar com os pescadores e desejava-lhes boa viagem e boa pesca.

Brindava-se com Vinho do Porto, comiam-se amêndoas.

Em 12 de Abrl de 1952 o Notícias de Portugal referia as palavras do Senhor Arcebispo de Mitilene.:

«Amigos, boa viagem e até à volta! Que o Senhor vos leve e que o Senhor vos traga!»

O regresso acontecia por alturas de Setembro-Outubro, a tempo dos portugueses terem o bacalhau à mesa da consoada.

Em 1955, foi construído, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, a mando do Grémio de Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau, comandado pelo tenebroso e corrupto Almirante Henrique Tenreiro, O Gil Eanes, navio-hospital que esteve ao serviço da frota bacalhoeira até 1973.

Nesse ano de 1955, Portugal tinha uma frota pesqueira de 70 barcos e cerca de cinco mil homens.

Em Dezembro de 2002 a frota rondava os 15 barcos e apenas dois/três por cento do bacalhau que consumíamos, era pescado por portugueses.

Foi com os pescadores portugueses que os noruegueses aprenderam a preparar o bacalhau, e em 2007, Portugal absorvia 40% das exportações de bacalhau da Noruega.

Tem largos e largos anos o contacto dos portugueses com o bacalhau.

Em Lisboa, na Praça da Figueira, a Antiga Casa do Bacalhau vende bacalhau há cerca de 150 anos.

O escritor Bernardo Santareno, médico de profissão, na campanha de 1957 prestou assistência a bordo do arrastão David Melgueiro, e na campanha de 1958, a bordo do Senhora do Mar e do navio-hospital Gil Eanes.

Dessa experiência de Santareno, resultou a peça de teatro O Lugre, publicada em 1959.

«Fala do Capitão: Tenho muita pena do António Nazareno. Era um bom rapaz e um bom pescador.  Tenho muita pena… Resta-nos a consolação de termos feito tudo para o salvar. Tudo. Gostaria mais de o sepultar em terra mas 4stamos longe e a lei não permite a arribada. Por isso o corpo do Nazareno será dado ao mar. Eu bem sei que numa cova funda, coberta com boa terra firme, um homem descansa mais em paz, que a mulher ou os filhos ou os pais o terão lá, anos e anos, quieto… Depois, na terra duma campa nascem flores e ervas de cheiro: giestas e malmequeres, rosmaninho e alecrim… Gostava, só Deus sabe como eu gostava!, de sepultar o António Nazareno em terra. Mas não posso. Era um grande prejuízo. Sei bem que todos vocês têm pena… Mas lembrem-se de que aqui, num destes portos da Terra Nova, ele não teria nem giestas, nem rosmaninho… nada disso! Seriam outras flores que a gente não conhece, que ele Nazareno, nunca viu em vida! Até a terra, até a terra que o cobriria, seria diferente da nossa: com outra cor, com outro cheiro. Isto é assim: e por assim ser, não devemos ter pena de deitar ao mar o corpo do Nazareno. Aqui nestes bancos da Terra Nova, ele fica menos só. Fica, fica mais acompanhado nestes mares. Se todas as vezes e em todos os sítios que este oceano matou um pescador português, houvesse, como é de uso na nossa terra, uma alminha iluminada… ai, então estes mares estariam cheiinhos de luzes, cheios a perder de vista! Vocês sabem que é verdade isto que eu lhes digo: alguns têm cá o pai, ou um irmão, ou um filho… É ou não assim, João das Almas. Estou a mentir, Zé Sol? O nosso companheiro António Nazareno ficará portanto neste mar. Que descanse em paz.»

Ainda sobre as vidas e trabalhos dos pescadores de bacalhau, Bernardo Santareno publicou, em 1959, o livro de narrativas Nos Mares do Fim do Mundo, de onde ressalta as condições em que um único homem, num dóri, pescava à linha, até encher o pequeno barco, regressar ao navio-mãe e começar a descabeçar os peixes, escalar e colocá-los para salga no porão.

Entre as frotas bacalhoeiras de outros países, eram os portugueses os que trabalhavam nas piores condições.

Uma vida miserável, que o regime queria que fosse epopeia.

Este é o começo de Nos Mares do Fim do Mundo:

«Enquanto o “David  Melgueiro” se afasta, mais e mais de Lisboa, eu surpreendo-me com as mãos  abertas ao vento, para nele colher um certo olhar negro e patético, ou um riso estridente e nervoso que queria ser lágrima, ou aquele dorido inclinar de cabeça silencioso e resignado, ou aquele beijo enviado por alguém que me pede uma estrela como testemunho da aventura, ou a serenidade hirta e requintada de quem, enquanto o navio se distancia, se acusa por não sentir nada (nem mágoa, nem saudade) por mim... Com as minhas longas mãos abertas ao vento..».

 Texto publicado em 8 de Abril de 2012.

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