terça-feira, 10 de novembro de 2020

PANDÉMICO QUOTIDIANO

A palavra do ano 2020 é confinamento, anunciou hoje a editora HarperCollins.

Em inglês diz-se lockdown.

 «A língua é o reflexo do mundo que nos rodeia e 2020 foi dominado pela pandemia. Escolhemos confinamento como palavra do ano porque resume a experiência partilhada por milhares de milhões de pessoas que tiveram de restringir a sua vida quotidiana para conter o vírus».

De há uns tempos a esta parte, sem ter dado por isso, o Cais ficou entregue à pandemia.

Em muitos momentos do meu quotidiano há um poema do Álvaro de Campos que não esqueço. Chama-se Poema em Linha Recta e começa assim:

«Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.»

Lembro-me das dificuldades do confinamento de Março.

Até comecei um diário dos dias difíceis que pouco durou:

« Estes apontamentos diários ficam por aqui.

Não que ele entenda que os dias não vão continuar a serem difíceis, mas acontece que se perdeu no que inicialmente pensara fazer.

Acabou por cair em extremismos opinativos, acabou em lamechices parvas, as palavras nunca lhe saíram como ele queria que saíssem.

Pôs as culpas na historieta que os dias do vírus o perturbavam.

Balelas.

Sente que para continuar a viver os dias de pesadelo, teremos que viver de forma mais inteligente.

Mas os tempos são medíocres, repletos de chicos-espertos-opinativos, repletos de aldrabões e oportunistas.

Tem saudades da vida, mesmo sabendo que essa vida não tinha excepcionalidades por aí além, mas era a sua vida, a possível.

Sobram-lhe muitas dúvidas que isso venha a acontecer.

Quando os gestos diários estão sujeitos a estados de emergência ou de calamidade, sabe que nada disso lhe provoca serenidade, tentará o seu melhor esforço para irradiar um ligeiro optimismo, mas…

Das imagens que as televisões lhe deram dos encontros que a CGTP fez no 1º de Maio, ficou-lhe uma: um homem já de meia-idade, máscara no rosto, bandeira vermelha na mão, tem um minuto em que baixa a máscara, põe a bandeira vermelha debaixo do braço, e mete um cigarro à boca. O repórter mudou para outros personagens, mas ele sorriu e ficou a pensar no prazer do fumar que aquele homem de meia-idade passou a usufruir naquele manso cair da tarde.

Fumar mata.

E daí?

Morre-se de tanta coisa.

Até de amor, como o King Kong, seguindo ele os passos do Eduardo Guerra Carneiro.»

Sinto-me confinado e com poucos meios, ou nenhuns, de fugir ao estupor que nos rodeia.

Acordo e, de imediato, sinto-me perfilado de medo como, por outros motivos, cantava o Zé Mário Branco.

Sim, tenho medo

Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.  

 Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.  

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido…

Mas há que dar volta a esta merda!

Diz-me como? pergunta-lhe o outro… o tal cínico do costume…

«Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.»

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