domingo, 7 de julho de 2013

NA MORTE DE MANUELA PORTO


Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os
amigos mais íntimos com um cartão de convite para o
ritual do Grande Desfazer: «Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje às 9
horas. Traje de passeio».
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir
à despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. «Adeus!
Adeus!»
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos...
em seguida, os lábios... depois os cabelos... ) a carne,
em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em
fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen... como
aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira em Poesia III, Portugália Editora, Lisboa Março de 1963.

Legenda: fotografia de Manuela Porto.

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