terça-feira, 8 de abril de 2014

ARTE POÉTICA


Por motivos vários, o canto de intervenção, antes do 25 de Abril, possui mais interesse, também qualidade, principalmente ao nível dos poemas, do que aquele que se seguiu ao Movimento dos Capitães.

Fácil é perceber-se o porquê.

Este Pare, Escute e Olhe de José Jorge Letria é um bom exemplo do que se afirma.

Editado em 1971 tem no seu lado B Arte Poética, um bonito poema de Hélia Correia para o qual Letria fez a música e que foi largamente cantado nos tempos do combate à ditadura.

Que o poema tenha carne
ossos vísceras destino
que seja pedra e alarme
ou mãos sujas de menino.
Que venha corpo e amante
e de amante seja irmão
que seja urgente e instante
como um instante de pão.
Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.
Que seja rua ou ternura
tempestade ou manhã clara
seja arado e aventura
fábrica terra e seara.
Que traga rugas e vinho
berços máquinas luar
que faça um barco de pinho
e deite as armas ao mar.
Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.


Por motivos nunca explicados (omissão tipográfica, qualquer outra…) a canção apenas referia a autoria de José Jorge Letria.

 Não sei se em edições posteriores foi feita a rectificação, mas recordo-me de um protesto publicado no República de 19 de Outubro de 1971.

Já agora, publique-se o texto, é do silêncio que vos falo, que José Jorge Letria fez publicar na contracapa do disco:

Foi mais de um ano de silêncio (depois do primeiro disco-fracassado). Mais de um ano de silêncio inteiramente assumido. Voluntariamente aceite. É fora dos circuitos normais (televisão, rádio, promoção, venda) que, dolorosamente, sem trincheiras nem disfarces, se descobrem os amigos (?), que se aprende a abominar a hipocrisia e a falsa coerência, a miséria das intenções, a ignorância das coisas elementares.

É no silêncio (um certo silêncio, entenda-se), que se descobre a utilidade das palavras. O seu fogo. A sua forma exacta. A sua acutilante facilidade de chegar onde mais ninguém chega. E ao mesmo tempo a sua infinita pobreza. A sua enorme timidez. Sim, porque as palavras são tímidas. Haverá alguém que duvide?

Para mim conservo a certeza de que está tudo ainda por fazer. Não são meia dúzia de discos ou de frases publicitárias, publicamente ditas, que definem uma música e lhe dão a necessária consistência. Desfaçam-se pois os equívocos. Já não é sem tempo. A quem me ouvir deixo, entretanto, a possibilidade de transformar em acto (ou quase) o que no canto se propõe. Se isso não acontecer fico, pelo menos, com a certeza de ter levado até ao fim a minha ingenuidade. Ou seja o silêncio donde partiu. Para os que ficarem pelo caminho vai também a minha saudação.



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