segunda-feira, 21 de abril de 2014

VIRAR A PROA DA BARCA


Adriano e as tuas canções com lágrimas para os homens que na redoma de vidro se quedam tristes e impávidos. Como se nada ao lado estivesse a acontecer. Apenas olhos para o supérfluo, o medíocre, o inútil.
Adriano e aqueles em que aprendeste e os que te seguiram sabendo que o importante é o que, cantando, se diz, tu que cantas para todos cujo nome é terra e a têm desenhado na palma da mão, tu que andas dentro das palavras dizendo-nos numa voz velada que é impossível amar serenamente com tantos amigos na prisão, porque a gente vê, ouve e lê.
Disseste-nos com as tuas canções que o homem que vive só não vive bem, tu que estás em tudo o que circula e tem o preço do nosso sangue, tu que vens da terra assombrada do ventre de todas as mães para dizeres que não pode haver medo, que o pensamento é como o vento e ninguém o pode amarrar, que os homens não findam, que cantar não é uma acto gratuito e que tudo só morrerá quando os ventres das mulheres da cidade não nos derem filhos para os invernos tristes.
Adriano, o teu canto maravilhoso que fala do trabalho explorado dos homens sobre a terra e da sua luta, nós caminheiros com sol nas espáduas acreditando que em multidão somos maiores, fazendo do teu-nosso canto o sangue que nos corre nas veias, o sangue e a voz dos poetas, as palavras que gostávamos que fossem nossas e que acabam por o ser de tanto as sentirmos e amarmos.
Contigo, Adriano, nascemos de novo, ouvimos-te e ficamos com uma vontade enorme de fazer coisas, pequenas que sejam.
Mas como poderemos ficar sossegados e calmos perante as notícias, nós que bem no lá no fundo gostamos de ter amos?
Adriano, o que nos dizes é muito mas não suficiente. Dás o fósforo mas o fogo não irrompe. Há que largar pela noite fora mas nenhuma moira encantada virará a proa da nossa barca. Seremos nós que a temos de virar
Mas como, Adriano?

(Texto datado de 21 de Fevereiro de 1971 escrito para um convívio na Baixa da Banheira que a polícia não deixou realizar)

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