quinta-feira, 3 de maio de 2018

MAIS FATIGA O QUE NÃO SE FAZ, REPOUSAR É TÊ-LO FEITO


Por caminhos desviados, apalpando o terreno, tenteando a ver se havia minas escondidas ou armadilhas, Ricardo Reis deixou-se ir na corrente porque não se sentia capaz de propor uma alternativa à conversa, e antes da sobremesa já tinha declarado não acreditar em democracias e aborrecer de morte o socialismo, Está com a sua gente, disse risonho o doutor Sampaio, a Marcenda não parecia interessar muito a conversa, por alguma razão pôs a mão esquerda no regaço, se resplendor havia, apagou-se. A nós o que nos vale, meu caro doutor Reis, neste cantinho da Europa, é termos um homem de alto pensamento e firme autoridade à frente do governo e do país, estas palavras disse-as o doutor Sampaio, e continuou logo, Não há comparação possível entre o Portugal que deixou ao partir para o Rio de Janeiro, e o Portugal que veio encontrar agora, bem sei que voltou há pouco tempo, mas, se tem andado por aí, a olhar com olhos de ver, é impossível que não se tenha apercebido das grandes transformações, o aumento da riqueza nacional, a disciplina, a doutrina coerente e patriótica, o respeito das outras nações pela pátria lusitana, sua gesta, sua secular história e seu império, Não tenho visto muito, respondeu Ricardo Reis, mas estou a par do que os jornais dizem, Ah, claro, os jornais, devem ser lidos, mas não chega, é preciso ver com os próprios olhos, as estradas, os portos, as escolas, as obras públicas em geral, e a disciplina, meu caro doutor, o sossego das ruas e dos espíritos, uma nação inteira entregue ao trabalho sob a chefia de um grande estadista, verdadeiramente uma mão de ferro calçada com uma luva de veludo, que era do que andávamos a precisar, Magnífica metáfora, essa, Tenho pena de a não ter inventado eu, ficou-me na lembrança, imagine, é bem verdade que uma imagem pode valer por cem discursos, foi aqui há dois ou três anos, na primeira página do Sempre Fixe, ou seria dos Ridículos, lá estava, uma mão de ferro calçada com uma luva de veludo, e tão excelente era o desenho, que, olhando de perto, tanto se via o veludo como se via o ferro, Um jornal humorístico, A verdade, caro doutor, não escolhe c lugar, Resta saber se o lugar escolhe sempre a verdade. O doutor Sampaio franziu levemente a testa, a contradição perturbou-o um pouco, mas levou-a à conta de pensamento demasiado profundo, porventura até subtilmente conciliador, para ser debatido ali, entre o vinho de Colares e o queijo. Marcenda mordiscava bocadinhos de casca, distraída, alteou a voz para dizer que não queria doce nem café, depois começou uma frase que, concluída, talvez pudesse ter feita derivar a conversa para o Tá Mar, mas o pai prosseguia, dava um conselho, Não é que se trate de um bom livro, desses que têm lugar na literatura, mas é. de certeza um livro útil, de leitura fácil, e que pode abrir os olhos a muita gente, Que livro é esse, O título é Conspiração, escreveu-o um jornalista patriota, nacionalista, um Tomé Vieira, não sei se já ouviu falar, Não, nunca ouvi, vivendo lá tão longe, O livro saiu há poucos dias, leia-o, leia-o, e depois me dirá, Não deixarei de o ler, se mo aconselha, já Ricardo Reis se arrependia de se ter declarado anti-socialista, antidemocrata, antibolchevista por acréscimo, não porque não fosse isto tudo, ponto por ponto, mas porque se sentia cansado de nacionalismo tão 86 hiperbólico, talvez mais cansado ainda por não ter podido falar com Marcenda, muitas vezes acontece, mais fatiga o que não se faz, repousar é tê-lo feito.

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