segunda-feira, 14 de maio de 2018

VIRA O DISCO E TOCA O MESMO!


Tenho de confessar que A Paleta foi excelen­temente recebida. Além da generosidade das refe­rências e do espontâneo interesse duma grande editorial espanhola, mereceu em 62, por unani­midade, o Grande Prémio de Ensaio da Sociedade Portuguesa de Escritores.Os prémios não se ti­nham ainda banalizado. E tratava-se então de uma promoção exclusivamente cultural. Como acontecia também com o Prémio Camilo Castelo Branco (obras de ficção), a cujo júri quase sempre perten­ci. Digo-o sem desprimor para os tantos prémios de hoje. Não se leia mais do que aqui escrevo. Mas era outra a canção. Indiscutivelmente. 
Enchia-se-nos a casa de amigos. Velhos e novos ­amigos. Com muita parra à mistura, é bem verda­de. Não há uvas sem parras. Juntos projectámos e organizámos, na mesma sala onde lavro este do­cumento para a posteridade (que não há), muita coisa que esforçadamente ergueu o punho contra a barbárie fascista. Se esta sala falasse, nunca mais se calava.
As conferências, por exemplo, do Grémio Alen­tejano, que assim se chamava, em 43, a Casa do Alentejo, foram aqui planeadas. Uma série de pa­lestras ilustradas com recitais de poesia e música (de música, estou dizendo), destinadas a um vasto público e aqui pensadas por amigos vários, entre os quais me ocorrem de momento a Francine Benoit, o Sidónio Muralha, o Alexandre Cabral, de cabelos à cão-d'água, risca ao meio, camisa azul-da-prússia e gravata amarela, jogava râguebi, bem bom. Co­mo era então difícil conseguir uma sala! E alugar um piano?
A primeira conferência, do Bento de Jesus Caraça - «Algumas reflexões sobre Arte» - sala cheia, decorreu sem problemas de maior. Mas, na segunda (e última), já os mastins tinham acordado, tudo mudou de figura. Sala ainda mais cheia. Fala­va o Lopes Graça sobre música medieval e punha um novo disco para documentar o que dizia, quan­do, no silêncio momentâneo, se ouviu, lá das últi­mas filas, uma voz avinhada, toda escorropichante: «Vira o disco e toca o mesmo!»
Era o sinal. Os mercenários atiraram-se ao pú­blico como feras esfaimadas. Cães à solta. Confu­são. As coisas não foram, no entanto, assim tão fáceis para eles. Nós tínhamos, a toda a volta da sala, um cordão de operários da Carris, trazidos pe­lo Cabral, me parece, que trabalhava na empresa. De livre vontade ali estavam para o que desse e viesse. E o que veio foi uma sessão de brutal pan­cadaria. Brutal, não exagero. Os mastins excitavam-se a si mesmos, trepando a cadeiras para ber­rar: «Quem é que disse morra a Pátria?» E, dessas mesmas cadeiras se servindo como camartelos, ber­ravam: «Viva a Pátria! Viva Salazar!» Os corpos engalfinhavam-se nas salas, rebolavam pelas esca­das do Grémio Alentejano abaixo até à rua e, na rua, até à esquadra do Rossio. Apesar da indignação que tudo isto provocava, ainda nos mais calmos, Caraça maravilhava-se: como era possível haver ainda gente pronta a bater-se, e de tal modo, em defesa da cultura! Pedra branca para mim: foi no fim dessa refrega que conheci o Ludgero Pinto Basto, recém-chegado da prisão, em Angra.

Mário Dionísio em Autobiografia

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