quarta-feira, 30 de maio de 2018

TALVEZ A TRISTEZA CAUSE FEBRE


Ricardo Reis aborreceu-se depressa com a farrapagem do corso, mas assistiu a pé firme, qualquer coisa que tivesse para fazer não era mais importante do que estar aqui, por duas vezes chuviscou, outra vez caiu forte a chuva, e ainda há quem cante louvores ao clima português, não digo que não, mas para carnavais não serve. No fim do dia, já terminado o desfile, o céu limpou, tarde foi, os carros e carruagens seguiram para o seu destino, lá ficarão a enxugar até terça-feira, retocam-lhes as pinturas deslavadas, põem-se os festões a secar, mas os mascarados, mesmo pingando das melenas e cadilhos, vão continuar a festa por essas ruas e praças, becos e travessas, em vãos de escada para o que não se possa confessar ou cometer às claras, assim se praticando por maior rapidez e barateza, a carne é fraca, o vinho ajuda, o dia das cinzas e do esquecimento será só na quarta-feira. Ricardo Reis sente-se um pouco febril, talvez tenha apanhado um resfriamento a ver passar o corso, talvez a tristeza cause febre, a repugnância delírio, até aí ainda não chegou. Um xexé veio meter-se com ele, armado com o seu facalhão de pau e o bastão, batendo um contra o outro, com grande estrépito, bêbado, a pedir equivocamente, Dá cá uma pançadinha, e arremetia ao poeta, de barriga esticada para a frente, avolumada por um postiço, almofada ou rolo de trapos, uma risota, aquele papo-seco de chapéu e gabardina a esquivar-se ao velho do entrudo, trajado de bicórnio, casaca de seda, calção e meia, Dá cá uma pancadinha, o que ele queria era dinheiro para vinho. Ricardo Reis deu-lhe umas moedas, o outro fez uns passos de dança grotescos, batendo com a faca e o pau, e seguiu, levando atrás de si um cortejo de garotos, mais os acólitos da expedição. Num carrinho, como de bebé, era levado, com as pernas de fora, um marmanjão de cara pintada, touca na cabeça, babeiro ao pescoço, fingindo chorar, se é que não chorava mesmo, até que o mostrunço que fazia de ama lhe chegava à boca um biberão de vinho tinto em que ele mamava sofregamente, com grande gáudio do público reunido, donde, de repente, saía a correr um rapazola que, rápido como o raio, ia apalpar o vasto seio fingido da ama e deitava logo a fugir, enquanto o outro berrava com voz rouca, de não duvidoso homem, Anda cá ó filho dum cabrão não fujas, anda cá apalpar-me aqui, e juntava o gesto à palavra com ostensividade suficiente para que as senhoras e mulheres desviassem os olhos depois de terem visto, o quê, ora, nada de importância, a ama tem um vestido que lhe desce até meio da perna, foi só o volume da anatomia, agarrada com as duas mãos, uma inocência. É o carnaval português. Passa um homem de sobretudo, transporta, sem dar por isso, um cartaz fixado nas costas, um rabo-leva pendurado por um alfinete curvo, Vende-se este animal, até agora ninguém quis saber o preço, mesmo havendo quem diga, ao passar-lhe à frente, Tal é a besta que não sente a carga, o homem ri-se dos divertimentos que vai encontrando, riem-se os outros dele, enfim desconfiou, levou a mão atrás, arrancou o papel, rasgou-o furioso, todos os anos é assim, fazem-nos estas partidas e de cada vez comportamo-nos como se fosse a primeira. Ricardo Reis vai descansado, sabe que é difícil fixar um alfinete numa gabardina, mas as ameaças surgem de todos os lados, agora desceu velozmente de um primeiro andar um basculho preso por uma guita, atirou-lhe o chapéu ao chão, lá em cima riem esganiçadas as duas meninas da casa, No carnaval nada parece mal, clamam elas em coro, e a evidência do axioma é tão esmagadora e convincente que Ricardo Reis se limita a apanhar do chão o chapéu sujo de lama. segue calado o seu caminha, já reviu e reconheceu o carnaval de Lisboa, são horas de voltar ao hotel.


Legenda: fotografia tirada do blogue Restos de Colecção

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