terça-feira, 22 de maio de 2018

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«ZAU ÉVUA (NORTE DE ANGOLA)
ABRIL-MAIO DE 1970 

O correio da guerra trouxe um livro. «Poesias Completas», de António Gedeão. «Para musicar. Um abraço. Cambezes». Quase automático. Gedeão é um dos poetas mais musicais (musicáveis) da língua portuguesa. E a sua poesia, minha velha amiga. Esses poemas, a angústia, o estar aqui, a viola, as noites, os estilhaços de um povo, o torniquete equatorial, a medicina artesanal, o resto, tudo tornaram fácil. Tão fácil, como sentir o arame farpado rasgando a pele dos sentidos. Tudo tomou, também, um repentino sentido. Não eram poemas isolados, mas uma história, o que estava ali escrito. E a história, e a poesia, eram demasiado belas para que a música as estragasse. Havia o Homem. Havia uma história. Havia um palco: a Vida. Eu daria apenas um pouco de música e um pouco de ordem. Mas, o importante, era o Homem. Mesmo à dimensão de uma rodela negra, num rodopio de 33 voltas por minuto.

Do início («numa qualquer manhã, um qualquer ser, / vindo de qualquer pai, / acorda e vai, / como se cumprisse um dever») até «vestidos de surrobeco / e acocorados no chão», vai um salto de 20 séculos. Um drama em tempo de LP. Um disco pensado alto. Este o esquema, o funil, o encurralar da ovelha. Sob uma macieira de plástico, o homem nascido-em-qualquer-parte diz donde vem e o que quer:

«Venho da terra assombrada
 do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém».

Mas avisa:

«Não há poder que me vença
 mesmo morto hei-de passar"»

Assim começa a fala do homem nascido. O pior é que o mundo não é o que devia ser. Há o desencanto do desencontro. O diálogo não passa de monólogo. As palavras são, apenas, sons. Para isto, mais vale «morrer atolado / na mais negra solidão». (A esta indiferença, a esta fácil aceitação da fatalidade, chamava Roger Vaillant, em «La Loi», «se portugalizer»). No entanto, nem tudo está, ainda, perdido. Acredita-se, mesmo por detrás da angústia, das contradições e de um quotidiano feito de misérias e esperanças, que «todo o tempo é de poesia». Há uma dinâmica permanente entre «bombas que deflagram / corolas que se desdobram / corpos que em sangue soçobram / vidas que a amar se consagram». O Homem acaba por ganhar o desafio, palmo a palmo, dia a dia, calo a calo: «Tenho sofrido poesia... / dói esta corda vibrante / a corda que o barco prende... / se vem onda que a levante / vem logo outra que a distende / não tem descanso jamais». Uma vitória adiada. Um volte-face do disco, um percurso do geral para o particular. Entramos em Portugal.

Todo um (saudável) culto do passado, construído sobre um saudosismo que ainda dói – «Poema da Malta das Naus» – é, a um tempo, homenagem, crítica e incitamento ao Homem Português de ontem e de hoje. O marinheiro quinhentista «moldou as chaves do mundo», mas toda essa epopeia teve (e tem) o seu preço, o preço trágico de uma «lágrima de preta». Este o drama dos descendentes da malta das naus: a ciência diz-lhes que a lágrima não tem «nem sinais de negro / nem vestígios de ódio». Mas... e daí? De que vale a ciência da análise, se o Homem Nascido não está preparado para a aceitar? Bastará a ciência ao Homem para que ele se humanize? Filipe II (que aqui se cognomina de Manuel I) tinha tudo, tudo! «Mas o que ele não tinha / era um fecho éclair». É isto que dói ao Homem Nascido: o não ter coisas tão aparentemente simples e possíveis como um fecho éclair. Jamais a felicidade completa. Sobretudo por ser conseguida à custa da felicidade dos outros. «Lágrima de Preta» é o primeiro poema que, no disco, se dirige à mulher.

A Mulher Portuguesa, mulher em vias de desenvolvimento, é hoje, talvez, o exemplo recente de uma nova forma de alienação. Ao fazer-se uma (demagógica) promoção da mulher, inaugura-se um moderno processo de a escravizar: a escravidão pelo trabalho desumanizado. E escravidão não só à dimensão da sociedade, mas na intimidade da sua própria vida (trabalho, casa, filhos, marido, trabalho... um ciclo vicioso infernal que uma vez iniciado não pode parar). «Calçada de Carriche» é um hino à escravidão da mulher-mártir, frágil máquina suburbana que o quotidiano da cidade suga. Mulher, máquina, máquina, que o vertiginoso e breve amor dos domingos evade para as auto-estradas, na doce ilusão de o novo mundo dos sentidos não ter segundas-feiras...
A evasão dá-se. «Leonor, Leonoreta, fuge, fuge, vai na asa de lambreta» , com o único rumo de fugir a si própria, numa ilusória felicidade, fugaz como a paisagem que a lambreta rasga.

O cerco aperta-se. O Homem torna-se cada vez mais circunscrito. De um trilião de homens passa-se para o grupo e, finalmente, para o indivíduo, para o homem concreto, com nome, residência e tudo. «Álvaro Góis / Rui Mamede / filhos de António Brandão / naturais de Cantanhede...». Eles vivem, existem, são. Em Braga ou em Olhão, no Alentejo ou na guerra, eles lá estão! «Vivos», «vestidos de surrobeco» e «acocorados no chão», eles estão em toda a parte. No chão, mas ainda vivos... Eis a "Fala do Homem Nascido"!
ELE nasceu numa qualquer manhã e não há poder que o vença. Mesmo morto há-de passar!

Lisboa, Novembro de 1972.

Dois anos e meio passados, o disco fez-se.

No caminho ficaram muitas ideias, entre as quais o entusiasmo de amigos como o Rui Ressureição e o Manolo Diaz, que, comigo em África, quiseram esperar por mim. Como muitas vezes acontece, novas oluções surgiram, entre as quais a que o talento e a inteligência  de José Calvário trouxeram a todo este trabalho.
Que António Gedeão me desculpe algumas amputações que fiz aos seus poemas, determinados por razões musicais.

Que, dos erros que houver, me ataquem a mim.

P.S. – Para o Eduardo Cambezes;
           Para ouvir. Um abraço. Niza.»

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