quinta-feira, 19 de outubro de 2023

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 A imagem mostra a contra capa da 1ª edição de Manual de Pintura e Caligrafia de José Saramago.

Saramago classificou este livro como um ensaio de romance.

Numa conversa com Carlos Reis, Saramago disse-lhe:

«Provavelmente não siu um romancista; provavelmente eu sou um ensaísta que precisa de escrever romances porque não sabe escrever ensaios».

Nas  fichas de leitura do serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, assinada por Joana Varela:

«Se José Saramago quisesse ser exacto e gostasse de desvendar segredos, em vez de Manual de Pintura e Caligrafia, chamaria muito simplesmente ao seu livro Manual de Vida, porque, no fundo, é só disso que se trata.

Mário Soares comprou  o seu exemplar do Manual de Saramago na Livraria Moraes e, em alto e bom som, terá dito:

«Manual de Pintura e Caligrafia? Mas o que é que o Saramago sabe disto?»

Nas fichas de leitura do serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, assinada por Joana Varela:

«Se José Saramago quisesse ser exacto e gostasse de desvendar segredos, em vez de Manual de Pintura e Caligrafia, chamaria muito simplesmente ao seu livro Manual de Vida, porque, no fundo, é só disso que se trata.»

Quando em Dezembro de 1976 José Saramago publica Manual de Pintura e Caligrafia, rodeou o livro de uma esperança de que teria uma boa aceitação por parte da crítica e pelos eseus leitores que, certamente, Saramago desconhecia quantos seriam.

Leitor assumido de Saramago, comprei o livro e dele muito gostei, gosto que, com o andar dos tempos, não se perdeu.

Robert Walser, citado por Rosa Montero em A Louca da Casa, após a publicação do seu primeiro livro, escreveu:

«É uma verdadeira desgraça quando um escritor não obtém sucesso com o seu primeiro livro, como me aconteceu a mim.»

Ainda Rosa Montero:

«Estou a pensar no pobre Robert Walser. Hoje é uma personagem de culto, um nome importante, embora não popular, da literatura contemporânea em alemão Mas a verdade é que, enquanto foi vivo, ninguém lhe deu a menor importância.

Finalmente, em 1905, o jovem Walser conseguiu que lhe publicassem o seu primeiro livro e até que lhe fizessem um contrato para o segundo. Esta conquista, que deve ter sido um dos momentos mais felizes da sua vida, implicou, a sua perdição. Walser, entusiasmado, deixou o trabalho de empregado de escritório assim que assinou o contrato, decidido a dedicar-se profissionalmente à escrita mesmo antes de sair a sua primeira obra e sem ter em conta o êxito que podia ter. Ou melhor, que não teve, porque foi um completo fracasso. Fizeram-lhe dias excelentes críticas, uma delas assinada por Herman Hesse, mas o livro com uma tiragem de mil e trezentos exemplares, só vendeu quarenta e sete cópias, e o editor franziu o nariz e decidiu não cumprir o acordo e não publicar a segunda obra.»

Deixemos Robert Walser, deixemos Rosa Montero, voltemos a José Saramago:

Joaquim Vicente no seu Rota de Vida,  conta que Nelson de Matos terá dito que o Manual tinha vendido três exemplares, um dos quais comprado por Mário Soares, que quando o adquiriu  na Livraria Moraes, terá dito: «Manual de Pintura e Caligrafia? Mas o que é que o Saramago sabe disto?»

É uma história, malévola história, de quem detesta Saramago, no fundo dos fundos também uma história muito mal contada. Eu comprei o livro. E ao tempo, sei de mais pessoas que o compraram.

«É talvez o meu livro mais autobiográfico», reconhecerá o próprio Saramago.

O escritor Mário de Carvalho:

«O livro não entusiasmou ninguém. Julgo ter percebido, então, o quanto aquele livro era importante para José Saramago e a incomodidade por que deve ter passado perante apreciações mais ou menos evasivas ou condescendentes. Tinha apostado muito forte. Creio que ainda hoje valoriza muito o Manual… Mas nas opiniões então dominantes, que, no essencial me parecem acertadas, não era ainda o romance de um grande escritor. Não tinha sido desta…»

José Manuel Mendes inserirá o livro do amigo na coerência de um percurso literário: «Se lermos com atenção os dois livros que ele escreveu antes, Terra do Pecado e Claraboia (sobretudo Claraboia), entendemos que está ali integralmente um homem capaz de fazer uma obra de grande envergadura. Depois, a tarimba do jornal e particularmente da crónica, mais do que os artigos de opinião, servem-lhe para experimentação de mecanismos de escrita e de procedimentos textuais de vária ordem. E quando um dia parte para a escrita do Manual de Pintura e Caligrafia, livro que valorizo bastante, ele está maduro para fazer esse tipo de experiência e levá-la a bom porto, a um bom resultado. O romance é um bom romance.»

 Começa nestas páginas o estilo que Saramago aperfeiçoará constantemente ao longo da sua obra.

 «Poderei escrever sempre, até ao fim da vida.»

 «Que quero eu? Primeiramente, não ser derrotado. Depois, se possível, vencer.»

 E quase definitivo:

 «Não sou já, não sou ainda, não sei que serei.»

José Saramago vai ter com Nelson de Matos à Moraes para que lhe publique Levantado do Chão. 

Nelson de Matos diz que não pode. 

Os motivos, e o resto, estão neste excerto de uma entrevista que deu ao Expresso de 27 de Novembro de 2004.

Nela se fica a saber o motivo porque não aconteceu continuar a ser o editor do que seria o futuro Prémio Nobel de Literatura, do amigo, do camarada…

Nelson de Matos tem razões suficientes para, cada vez que se lembra do episódio, murmurar de si para si, que o destino é mesmo um tipo sem moral nenhuma.

«- Quando estava na altura na editora Moraes, você não publicou o terceiro original de José Saramago.

- Nós não temos a mesma leitura dos acontecimentos, porque o Saramago conta isso de uma maneira e eu conto de outra. Peço desculpa ao Saramago por considerar que ele conta mal, porque ele acha que existiram influências sinistras da minha decisão. E a verdade é que não existiram, foi uma coisa bastante mais prosaica. Ou seja: eu publiquei um livro de contos que se chamava “Objecto Quase” e um romance, “Manual de Pintura e Caligrafia”.

- Qual era o terceiro?

- O “Levantado do Chão”, que o Saramago me apresentou, que eu li, e gostei – nada a dizer sobre o livro, que é um excelente romance. Mas nessa altura a Moraes estava no fim.

- Falida?

Exactamente. Os livros anteriores do Saramago não tinham vendido. Ele tinha estado no “Diário de Notícias” e estava a atravessar aquele período negativo posterior, muito marcado politicamente. Tive que lhe dizer: “José, fiz duas experiências, não resultaram, lamento não ter condições para poder fazer a terceira.” E não publiquei. Esse livro, por coincidência e por felicidade – e digo-o sem nenhum rancor…

- … foi a explosão

- … foi o início da explosão de Saramago e do seu sucesso futuro. Portanto, passei a ter no meu currículo de editor o ter recusado publicar um futuro Prémio Nobel.

- Essa é uma nódoa inapagável!

- E não é a única! Na vida dos editores, essas coisas acontecem com relativa frequência: o não se apostar num autor e ter uma grande surpresa.

- Ficou surpreendido quando ganhou o Nobel?

- Claro, porque um Nobel nunca se espera. Quando me disseram, eu estava em Frankfurt, no meio de uma reunião. Claro que fiquei contente. Mas foi mais um contentamento do que uma surpresa.- Voltou a chamar-se a si próprio: “Que grande estúpido que eu fui!”
- Sim…Lembro-me que, depois, estive com o Saramago, sentado, no “stand” da “Dom Quixote”, num momento de descanso. Estivemos a falar e divertimo-nos um pouco com essa situação.

- Não ficaram sequelas entre os dois?

- Da minha parte, nunca. Da parte do José Saramago, creio que ele ficou desgostoso e suponho que nunca me perdoou ou entendeu esse gesto. Sempre relatou isso como se eu tivesse tido pressões para não o editar. E isso não é verdade.

- Que tipo de pressões?

- Políticas, empresariais, eu sei lá!

- Mas vocês pertenceram ao mesmo partido, ainda por cima.

- Sim, sim, sim

- Você ainda estava no PCP?

- Ainda, o que mostra o absurdo da situação.»

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