sexta-feira, 19 de março de 2010

EM NOME DO PAI

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Os dias “ de qualquer coisa” sempre me incomodaram: da mulher, da mãe, do pai, da água, do livro, da árvore, do teatro, até houve um idiota de um deputado do PSD que chegou a propor, em plena Assembleia da República o "Dia do Cão".Para mim, dia do pai sempre foi, em qualquer dia do ano, telefonar e dizer-lhe: “vamos jantar?” O meu pai, por vezes, sugeria: "podíamos primeiro ir matar uma matinée".Jantar é um modo, suave, de dizer, porque o que íamos era beber uns valentes copos. Por aqui, está emoldurada na parede, a conta do “Isaura Restaurante", de um jantar em 20 de Novembro de 1989:

Pão: 140$00
Vinho: 6.900$00
Peixe: 750$00
Aves e Caça: 950$00
Queijo: 500$00
Fruta: 500$00
Whisky: 1.300$00
Total: 11.160$00.


Numa das tais matinées que o meu pai, por vezes, propunha fomos um dia ver, ao “Londres”, “A Insustentável Leveza do Ser” baseado no livro do Milan Kundera.

Por comum acordo, saímos aos vinte minutos de exibição, e fomos para um restaurante ali para Alçantara, o “Cuidado com o Degrau”, que não sei se ainda existe.

Chegámos ao "Cuidado Com o Degrau", perto das sete da manhã, saímos à uma da manhã.
Havia mais histórias para contar, talvez um dia surjam, mas estes são os dias do pai que, penso, valer a pena ter na vida, os que não estão sujeitos a agenda.

Em Março de 2008, o "Público” publicou “Em Nome do Pai”, uma pequena antologia do Pai na Poesia Portuguesa, organizada por José Cruz dos Santos, que há dias viu a “Leya” guilhotinar-lhe uma série de livros, prefaciada por Vasco da Graça Moura, “a melancolia dos fantasmas mais amados” e direcção gráfica de Armando Alves.

Um livro bonito.

Vou lá buscar um poema, não porque seja dia do pai, mas porque a poesia é para sr consumida em todos os dias do nosso viver e sai hoje como poderia sair num qualquer outro dia.

Escolhi um poema de Vasco Graça Moura, um excelente tradutor de clássicos, um poeta e romancista de valor, mas com essa pecha de se perder, politicamente, na defesa do PSD e dos seus barões e demais populaça.

Necessariamente, ninguém é perfeito:

“o meu pai está em leça da palmeira, lá perto do farol da boa nova,
num cemitério varrido pela nortada e pelo cheiro a maresia,
não longe das melhores coisas do siza vieira e de lugares do nntónio nobre,
não longe da petrogal e dos seus grandes cilindros metálicos,
não longe do lugar onde nasceu, numa casa depois demolida para as obras de leixões

quando ele era pequeno, um dia a mécia de sena trouxe
uma fotografia,
cedidda por um amigo comum, de um renque de casas junto ao mar.
fiquei com uma ideia da casa dos meus avós na leça de fins
do século
e de como o mundo é ainda mais pequeno do que eu imaginava.
agora o meu pai já só escuta o ronco da sereia e as buzinas
do nevoeiro,

e passa-lhe por cima, em cadências regulares, um facho de luz
rasgando a noite.
agora já não vê as banhistas a menearem-se entre o sol, a areia e a água,
nem diz “olha aquela é muito potável” com um riso que sempre
irritou a minha mãe.
agora fiquei eu com a integral do balzac que ele passava a vida a ler,
e faz-me a maior das impressões que ele esteja para ali sem livros,
sem o Eça, sem nós todos.

o meu pai morava ali perto, no silêncio das luas já não sabe onde
era a sua casa.
a gente passa nos dias do costume a deixar-lhe flores e algum
recolhimento,
ou então um de nós diz “fui com a mãe pelo cemitério”, sem falar
no nome dele.
isso não é uma rasura, mas um sinal mais forte que perturba
a densidade das palavras,
porque o meu pai tinha os olhos muito azuis e essa cor às vezes
fica ali no mar.”

2 comentários:

ié-ié disse...

O "Cuidado Com O Degrau" era um dos meus restaurantes preferidos. Ia lá praticamente todas as semanas. Anos 80. Não, já não existe!

PS - Ah! Também tenho horror aos "dias".

LT

ié-ié disse...

Outra coisa: o José Cruz dos Santos viu o seu livro "guilhotinado", simplesmente porque quis. Não os quis de volta...

LT